RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO
VIGIAR E PUNIR. Imaginário social brasileiro ainda vincula as prisões a sofrimento e vingança
Os acontecimentos das últimas semanas no Presídio de Pedrinhas, no Maranhão, trouxeram novamente ao debate público o tema do descalabro da situação carcerária no Brasil. Muito embora as condições carcerárias sempre tenham sido marcadas pela precariedade em nosso país, colocando em questão a tese foucaultiana da prisão como meio de disciplinamento, foi com o massacre do Carandiru, no início dos 1990, que nos demos conta de que governos democraticamente eleitos podiam perpetrar atos de pura barbárie, por ação ou omissão, e que contavam, para tanto, com a indiferença, ou mesmo o apoio ativo, de boa parte da sociedade. Quase um quarto de século depois, o fenômeno se sucede, as crises atingem diversos Estados, de forma alternada, e a precária gestão carcerária produz cada vez mais aquilo que o mesmo Foucault, agora afinado com a realidade brasileira, nos indicava: a delinquência, e não a reinserção, as facções criminais, e não a prevenção ao crime, a corrupção de servidores e o atropelo dos mais elementares direitos de apenados, presos provisórios, e de seus familiares.
Já na década de 30 do século passado, Rusche e Kirchheimer, no clássico Punição e Estrutura Social, analisando as relações entre as condições carcerárias em diferentes países e suas respectivas realidades sociais, apresentaram a famosa lei da menor elegibilidade, na tentativa de compreender por que, mesmo em sociedades ditas democráticas, muitas vezes não havia maior preocupação com a garantia dos direitos dos presos. Segundo concluíram, a instituição prisional se legitimava socialmente, cumprindo sua função retributiva e intimidatória contra as classes populares, desde que as condições de vida na prisão fossem sempre piores do que as condições de vida dos setores mais empobrecidos da classe trabalhadora. Se em alguns países esta lei de ferro foi rompida, admitindo-se que a pura e simples privação da liberdade por períodos maiores ou menores por si só já desempenha o papel de expiação e intimidação que dela se espera, no Brasil o imaginário social ainda está em grande medida vinculado à prisão como sofrimento e vingança, legitimando assim a falta de atenção do Estado e todos os efeitos daí decorrentes.
A situação se agrava nas duas últimas décadas por dois motivos: o crescimento da criminalidade urbana violenta, expresso, entre outros crimes, pelas altas taxas de homicídio, ampliando a sensação de insegurança e fomentando o discurso da guerra contra o crime e contra os criminosos; e o crescimento vertiginoso das taxas de encarceramento, fruto, em grande medida, do endurecimento da ação do Estado contra o tráfico de drogas, levando milhares de pequenos comerciantes de drogas aos presídios, e da utilização crescente do encarceramento provisório, agravando o caráter seletivo e discriminatório do sistema penal e deixando intocada a ineficiência da investigação policial e a morosidade judicial.
No ano de 2012, chegamos a um total de 549.786 presos, maior população carcerária de toda a história, representando uma taxa de encarceramento de 401,7 presos por 100 mil habitantes maiores de 18 anos. Essa taxa varia muito de Estado para Estado, tornando a geografia do encarceramento no Brasil bastante variável. O Maranhão, agora na berlinda, contava naquele ano com 128,5 presos por 100 mil habitantes maiores de 18 anos, bem menos do que a média nacional, e ainda assim em prisões superlotadas e dominadas por grupos organizados dentro e fora dos presídios.
O crescimento do número de presos provisórios, que se mantém constante na última década, reflete a pouca efetividade da nova lei de cautelares no processo penal (Lei 12.403/2011), que deu ao judiciário uma série de novas possibilidades para a garantia do andamento do processo, sem a necessidade da prisão do acusado, entre as quais o monitoramento eletrônico do preso, ainda pouco utilizado, seja por resistência dos juízes, seja pela falta de estrutura nos Estados.
Conforme os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o aumento da opção pelo encarceramento no Brasil não é acompanhado pela garantia das condições carcerárias, contribuindo para a violência no interior do sistema, a disseminação de doenças e o crescimento das facções criminais. Em 2011, o déficit era da ordem de 175.841 vagas. Já em 2012, este número passa para 211.741, num crescimento de 20% no curto período de um ano, chegando a média nacional a 1,7 presos por vaga no sistema.
Sem a garantia de vagas, e com o crescimento do número de presos a cada ano, parece evidente que as prisões no Brasil acabam por assumir um papel criminógeno, reforçando os vínculos do apenado com a criminalidade e deslegitimando a própria atuação do Estado no âmbito da segurança pública. Mas fica a pergunta: estará a sociedade brasileira interessada em repensar o gulag carcerário e suas consequências sociais, ou continuaremos ainda a mercê do discurso fácil e demagógico dos que sustentam e perpetuam esta calamidade?
A última década no Brasil foi marcada pela redução constante e sustentada das vergonhosas taxas de desigualdade social em nosso país. Políticas de inclusão social de grupos vulneráveis tem produzido resultados bastante consistentes, recebendo reconhecimento internacional. O avanço na atenção aos direitos sociais, no entanto, se não acompanhado pelo acesso aos mais elementares direitos civis a parcelas importantes da população brasileira, submetidas cotidianamente à violência e ao arbítrio policial e à violência criminal, a um sistema policial e judicial incapaz de esclarecer a grande maioria dos crimes e garantir o contraditório e, aos que caem nas malhas da lei, condições carcerárias cada vez mais degradantes, não terá condições de nos conduzir a uma democracia digna deste nome. Este o tardio desafio da próxima década. Estaremos à altura?
POR RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO SOCIÓLOGO, COORDENADOR DO PPG EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA PUCRS E MEMBRO DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA
VIGIAR E PUNIR. Imaginário social brasileiro ainda vincula as prisões a sofrimento e vingança
Os acontecimentos das últimas semanas no Presídio de Pedrinhas, no Maranhão, trouxeram novamente ao debate público o tema do descalabro da situação carcerária no Brasil. Muito embora as condições carcerárias sempre tenham sido marcadas pela precariedade em nosso país, colocando em questão a tese foucaultiana da prisão como meio de disciplinamento, foi com o massacre do Carandiru, no início dos 1990, que nos demos conta de que governos democraticamente eleitos podiam perpetrar atos de pura barbárie, por ação ou omissão, e que contavam, para tanto, com a indiferença, ou mesmo o apoio ativo, de boa parte da sociedade. Quase um quarto de século depois, o fenômeno se sucede, as crises atingem diversos Estados, de forma alternada, e a precária gestão carcerária produz cada vez mais aquilo que o mesmo Foucault, agora afinado com a realidade brasileira, nos indicava: a delinquência, e não a reinserção, as facções criminais, e não a prevenção ao crime, a corrupção de servidores e o atropelo dos mais elementares direitos de apenados, presos provisórios, e de seus familiares.
Já na década de 30 do século passado, Rusche e Kirchheimer, no clássico Punição e Estrutura Social, analisando as relações entre as condições carcerárias em diferentes países e suas respectivas realidades sociais, apresentaram a famosa lei da menor elegibilidade, na tentativa de compreender por que, mesmo em sociedades ditas democráticas, muitas vezes não havia maior preocupação com a garantia dos direitos dos presos. Segundo concluíram, a instituição prisional se legitimava socialmente, cumprindo sua função retributiva e intimidatória contra as classes populares, desde que as condições de vida na prisão fossem sempre piores do que as condições de vida dos setores mais empobrecidos da classe trabalhadora. Se em alguns países esta lei de ferro foi rompida, admitindo-se que a pura e simples privação da liberdade por períodos maiores ou menores por si só já desempenha o papel de expiação e intimidação que dela se espera, no Brasil o imaginário social ainda está em grande medida vinculado à prisão como sofrimento e vingança, legitimando assim a falta de atenção do Estado e todos os efeitos daí decorrentes.
A situação se agrava nas duas últimas décadas por dois motivos: o crescimento da criminalidade urbana violenta, expresso, entre outros crimes, pelas altas taxas de homicídio, ampliando a sensação de insegurança e fomentando o discurso da guerra contra o crime e contra os criminosos; e o crescimento vertiginoso das taxas de encarceramento, fruto, em grande medida, do endurecimento da ação do Estado contra o tráfico de drogas, levando milhares de pequenos comerciantes de drogas aos presídios, e da utilização crescente do encarceramento provisório, agravando o caráter seletivo e discriminatório do sistema penal e deixando intocada a ineficiência da investigação policial e a morosidade judicial.
No ano de 2012, chegamos a um total de 549.786 presos, maior população carcerária de toda a história, representando uma taxa de encarceramento de 401,7 presos por 100 mil habitantes maiores de 18 anos. Essa taxa varia muito de Estado para Estado, tornando a geografia do encarceramento no Brasil bastante variável. O Maranhão, agora na berlinda, contava naquele ano com 128,5 presos por 100 mil habitantes maiores de 18 anos, bem menos do que a média nacional, e ainda assim em prisões superlotadas e dominadas por grupos organizados dentro e fora dos presídios.
O crescimento do número de presos provisórios, que se mantém constante na última década, reflete a pouca efetividade da nova lei de cautelares no processo penal (Lei 12.403/2011), que deu ao judiciário uma série de novas possibilidades para a garantia do andamento do processo, sem a necessidade da prisão do acusado, entre as quais o monitoramento eletrônico do preso, ainda pouco utilizado, seja por resistência dos juízes, seja pela falta de estrutura nos Estados.
Conforme os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o aumento da opção pelo encarceramento no Brasil não é acompanhado pela garantia das condições carcerárias, contribuindo para a violência no interior do sistema, a disseminação de doenças e o crescimento das facções criminais. Em 2011, o déficit era da ordem de 175.841 vagas. Já em 2012, este número passa para 211.741, num crescimento de 20% no curto período de um ano, chegando a média nacional a 1,7 presos por vaga no sistema.
Sem a garantia de vagas, e com o crescimento do número de presos a cada ano, parece evidente que as prisões no Brasil acabam por assumir um papel criminógeno, reforçando os vínculos do apenado com a criminalidade e deslegitimando a própria atuação do Estado no âmbito da segurança pública. Mas fica a pergunta: estará a sociedade brasileira interessada em repensar o gulag carcerário e suas consequências sociais, ou continuaremos ainda a mercê do discurso fácil e demagógico dos que sustentam e perpetuam esta calamidade?
A última década no Brasil foi marcada pela redução constante e sustentada das vergonhosas taxas de desigualdade social em nosso país. Políticas de inclusão social de grupos vulneráveis tem produzido resultados bastante consistentes, recebendo reconhecimento internacional. O avanço na atenção aos direitos sociais, no entanto, se não acompanhado pelo acesso aos mais elementares direitos civis a parcelas importantes da população brasileira, submetidas cotidianamente à violência e ao arbítrio policial e à violência criminal, a um sistema policial e judicial incapaz de esclarecer a grande maioria dos crimes e garantir o contraditório e, aos que caem nas malhas da lei, condições carcerárias cada vez mais degradantes, não terá condições de nos conduzir a uma democracia digna deste nome. Este o tardio desafio da próxima década. Estaremos à altura?
POR RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO SOCIÓLOGO, COORDENADOR DO PPG EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA PUCRS E MEMBRO DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - O Rodrigo coloca muito bem diversos fatores, mas esquece que o maior problema no Brasil é que as leis que regulam e exercem seus efeitos na execução penal não são executadas , nem fiscalizadas e tampouco aplicadas na sua plenitude. Há uma conivência generalizada entre os poderes, uns padrinhando outros e ninguém sendo responsabilizado pela morosidade, falta de controle, má gestão, violação de direitos humanos e abandono dos presos nos processos e nos ambientes superlotados, depredados, insalubres, permissivos e inseguros das unidades prisionais onde as galerias sã dominadas por facções. Tudo isto é efeito da inoperância de uma justiça criminal brasileira assistemática, burocrata, corporativa, isolada, lenta e submissa ao poder político.
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