Presídios brasileiros têm cotidiano de atrocidades e barbárie. No Rio Grande do Norte, em ‘masmorra’, preso já comeu fígado de outro. Juiz diz que assassinatos dentro de presídio no Sul são camuflados. Cáceres repetem quadro caótico de Pedrinhas, em São Luís, mas há casos de recuperação
ALESSANDRA DUARTE E FLÁVIO ILHA
O GLOBO
Atualizado:11/01/14 - 20h42
À esquerda, condições precárias no Complexo João Chaves, em Natal; à direita, celas organizadas por facção no Presídio Central de Porto Alegre Divulgação / CNJ e Sidnei Brzusca
RIO e PORTO ALEGRE — As cenas de barbárie no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, se repetem em outras prisões do país, diante da falta de controle do Estado sobre o que ocorre no sistema prisional brasileiro, alertam magistrados. Em inspeções especiais ou no dia a dia nas Varas de Execuções Penais, eles souberam de casos chocantes de decapitação e vísceras espalhadas pelas celas, como no Rio Grande do Norte, governado por Rosalba Ciarlini (DEM). No outro extremo do país, o governo do Rio Grande do Sul, sob adminitração de Tarso Genro (PT), tem até esta semana para cumprir o prazo estipulado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e adotar medidas para retomar o controle do Presídio Central de Porto Alegre, onde facções criminosas executam desafetos com doses letais de cocaína, para mascarar os assassinatos, denuncia o juiz Sidinei Brzuska.
Tal quadro de descontrole — em um universo de 548 mil presos para apenas 238 mil vagas em todo o país — precisa ser enfrentado com uma ação coordenada entre Executivo, Judiciário, defensorias públicas e o Ministério Público, afirma o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Quando esteve à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ele ajudou a criar os mutirões carcerários que percorrem o país para cobrar providências que eliminem esse quadro caótico. Se propõe uma atuação conjunta, Gilmar é duro ao cobrar da União que não retenha as verbas destinadas ao setor, o que, na sua opinião, configura “um crime de responsabilidade”.
— As cadeias são escolas do crime. Se o Estado não propicia o mínimo de garantia, alguém propicia. A seu modo. E exige contrapartida — alerta Gilmar, numa referência a ação das facções criminosas dentro dos presídios.
Há, porém, exemplos de prisões que chegaram ao fundo do poço e, aos poucos, começam a implantar um sistema que, ao menos, interrompeu a sequência de crimes bárbaros. Na Casa de Detenção conhecida como Urso Branco, em Rondônia, onde 27 presos foram decapitados em 2002 e outras 24 mortes ocorreram dois anos depois, não há registro de assassinatos desde 2009. Seguindo a orientação da OEA, os presos mais perigosos foram transferidos para outra unidade e o número de detentos — que chegou a 1,3 mil para 680 vagas — hoje é de 600.
A redução do déficit de vagas também foi um dos fatores que reduziu a tensão no Espírito Santo, onde há quatro anos presos chegavam a ficar em contêineres, sem grades e janelas. A população carcerária, que em 2012 era de 9.784 pessoas para 4.058 vagas, hoje chega a 15.187 presos. No entanto, o déficit caiu para 1.847.
Sistema carcerário do RN tem déficit de pelo menos 2 mil vagas
No Rio Grande do Norte, há prisão chamada de “masmorra”, outra que é um “lixão”, e preso que comeu, literalmente, o fígado de outro, após matá-lo, decapitá-lo e espalhar suas vísceras pela cela. As denúncias fazem parte do relatório de 2013 do Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no estado. Segundo o relatório, o sistema prisional do RN está “em colapso”. O estado é um dos três, ao lado do Maranhão e do Rio Grande do Sul, em que o supervisor de Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, Guilherme Calmon, defendeu intervenção federal no sistema prisional, em entrevista ao GLOBO em dezembro.
Com pouco mais de seis mil presos, o RN tem déficit de pelo menos 2,1 mil vagas nas suas prisões. Exemplos do quadro estão no Complexo João Chaves, em Natal: os presos “amontoados” da unidade masculina de regime fechado não têm banho de sol; e a unidade semiaberta “mais parece um lixão”, diz o CNJ, que visitou o estado em abril e maio.
Na maior unidade do RN, a Penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta, há, além da superlotação (705 presos para 420 vagas), esgoto a céu aberto e pavilhões depredados — “não há mais grades de contenção ou que isolem os andares”. Desde 2007, foram 20 mortes violentas de presos na unidade: “quem matar o outro preso com maiores requintes de crueldade ganha prestígio e se torna líder. Houve uma morte (em 2011) em que um preso, que já matou cinco na unidade, esfaqueou outro, decapitou-o e o estripou, espalhando suas vísceras pela cela e ainda comeu parte do fígado da vítima. Uma total selvageria”, afirma o relatório.
Além de presídios, o estado tem 21 Centros de Detenção Provisória (CDPs) — e todos deveriam ser desativados, diz Henrique Baltazar, juiz de Execuções Penais de Natal e Nísia Floresta, e que participou da coordenação do Mutirão no RN em 2013:
— São antigas carceragens de delegacia que viraram presídios, mas não foram feitas para isso. O esgotamento, por exemplo, são fossas sépticas que transbordam, foram feitas para bem menos gente.
O prédio do CDP da Ribeira, dos anos 1960, “assemelha-se a uma masmorra, posto que escura, úmida e sem ventilação”. No CDP da Zona Norte, o Mutirão encontrou um preso cego, que não conseguia se movimentar, “em total estado de inanição”, jogado num colchonete numa cela, “cheio de fezes, já que não consegue se limpar”. Não bastassem essas condições, quando o Mutirão levou o caso ao juiz responsável pela unidade, viu-se que o preso já tinha direito à progressão para regime semiaberto, e ele foi entregue a um familiar.
E o sistema prisional potiguar não tem atendimento médico: “à exceção da Penitenciária de Parnamirim e do CDP feminino da mesma cidade, nenhuma outra possui assistência médica na unidade, nem qualquer enfermeira”.
Outro dos principais problemas é a falta de registro e controle de dados. A Secretaria estadual de Justiça “não possui sistema informatizado de controle dos presos”. E “há unidades que não possuem internet ou sequer telefone/fax”. O resultado é que não foi possível ser obtida “sequer uma lista dos nomes e números de presos, seja ela de provisórios ou condenados”. Também não se sabe quantos presos estão em tratamento de doenças como Aids e tuberculose.
À falta de estrutura, somou-se aumento de quase 400% no número de presos nos últimos dez anos: de 1.729 para 6.476. O número de agentes penitenciários, hoje cerca de 900, cresceu só 70%. Em Alcaçuz, diz o juiz Baltazar, há quase 15 presos por agente; a ONU recomenda três presos para cada agente.
Para Baltazar, a prisão hoje com mais riscos de segurança é Alcaçuz. Lá, houve uma morte em 2013 e três em 2012. E, em 2011, uma grande rebelião incluiu atentados nas ruas, com ônibus queimados. Também em Alcaçuz já teria se infiltrado a maior facção criminosa paulista, além de se formar uma facção rival, local, denuncia Baltazar.
O coordenador de Administração Penitenciária do estado, o major da PM Mairton Castelo Branco, diz que há R$ 16 milhões federais, do Fundo Penitenciário, garantidos para construir um presídio em Ceará-Mirim, na Grande Natal, com 603 vagas. A previsão é que as obras comecem no 1º semestre:
— Outra unidade prevista é em Mossoró, também com 603 vagas, mas esta deve demorar mais, pois ainda estamos negociando a verba.
O que já está em obra hoje, afirma o major, são a ampliação do presídio do Seridó, criando mais 80 vagas até junho; e a reforma de um prédio para receber uma unidade semiaberta em Natal, com 400 vagas, também para junho.
RS tem que adotar medidas urgentes esta semana
Alvo de uma ação da Comissão de Direitos Humanos da OEA para garantir a integridade dos mais de quatro mil detentos, o Presídio Central de Porto Alegre, o maior do Rio Grande do Sul, registrou nove homicídios de presos entre 2011 e 2013, segundo a 2ª Vara de Execuções Criminais (VEC). Esses dados contrastam com informações da Secretaria estadual de Segurança, que não contabilizou assassinatos no local nesse período.
A discrepância tem uma explicação, segundo Sidinei Brzuska, titular da VEC: as mortes cometidas pelas facções criminosas dentro da penitenciária são camufladas para que pareçam naturais diante das autoridades. A quantidade de presos egressos do Presídio Central mortos durante a progressão de regime também não consta nas estatísticas oficiais. Segundo a VEC, houve 26 homicídios de detentos no regime semiaberto oriundos do presídio no mesmo período — a maior parte morta de forma violenta.
O governo, segundo o juiz, não tem interesse em investigar essas mortes porque isso poderia desestabilizar o sistema penitenciário do estado, que tem um déficit de 7,5 mil vagas.
Em 30 de dezembro do ano passado, a OEA notificou o governo brasileiro para adotar, em 15 dias, medidas como a redução no número de detentos e a retomada do controle penitenciário pelo estado. A Secretaria de Direitos Humanos do governo federal tem até terça-feira para responder à notificação.
O Presídio Central abriga o dobro da sua capacidade. Mesmo com a superlotação, a penitenciária não registra conflitos desde dezembro de 2009. Segundo Brzuska, a aparente calmaria é fruto da organização. Da grade para fora, o local é administrado pela Brigada Militar; da grade para dentro, pelas facções criminosas que dominam os dez pavilhões e ditam as regras.
— Homicídios violentos, como os que ocorreram no Maranhão, revelam desorganização. A regra de convivência no (presídio) Central é rígida e não é quebrada porque todos ganham com ela, desde o Estado até os presos. Há muito dinheiro em jogo num presídio desse tamanho, por isso o método das mortes camufladas não incomoda ninguém — disse o juiz.
Os nove homicídios foram considerados pelo sistema penitenciário gaúcho como mortes naturais ou provocadas por causas desconhecidas. Brzuska diz, no entanto, que conseguiu documentar, com laudos e depoimentos de detentos, pelo menos seis desses assassinatos. Nos outros três, as evidências são grandes, mas ainda não há provas materiais. Em geral, os presos são mortos com doses letais de cocaína.
De acordo com o magistrado, o que mantém o presídio funcionando sem conflitos é o lucro obtido pelas facções e pelo Estado com o modelo de organização adotado no local. Em alas dominadas por criminosos, as celas estão limpas e não necessitam de manutenção — responsabilidade da Superintendência Estadual dos Serviços Penitenciários (Susepe). Na cantina, os detentos têm acesso a alimentos industrializados, o que gera um mercado paralelo nos pavilhões que movimenta mais de R$ 100 mil mensais e faz o Estado lucrar, diz Brzuska.
O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Pio Giovani Dresch, prometeu cobrar uma solução definitiva para a situação do presídio. Em 2009, a CPI do Sistema Carcerário classificou o Presídio Central como a “masmorra do século XXI".
Estado nega homicídios
Em nota, o governo do Rio Grande do Sul afirmou que compartilha das mesmas preocupações com relação à situação do Presídio Central e que “trabalha desde o início da atual gestão para resolver esse problema histórico”. O documento contesta os dados do Judiciário e afirma que, nos últimos três anos, “não houve nenhum homicídio no estabelecimento”.
As mortes causadas por problemas de saúde, segundo o governo, caíram de 47, entre 2008 e 2010, para 15, entre 2011 e 2013. A promessa do governo do estado é criar, até o fim deste ano, 6.340 vagas no regime fechado e 450 no semiaberto para desafogar as prisões gaúchas. A nota reafirma que não houve homicídio no Presídio Central nos últimos anos e que “a situação do Presídio Central de Porto Alegre será resolvida até o final de 2014”.
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