sábado, 18 de janeiro de 2014

NÃO É IGUAL, É MUITO PIOR

ZERO HORA 18 de janeiro de 2014 | N° 17677

CRIS GUTKOSKI

VIOLÊNCIA NO MARANHÃO. Crise institucional maranhense não poupa nem o trabalho dos jornalistas que a denunciam



Os crimes brutais, esses que violam o corpo humano num nível estarrecedor, não poupam sequer os jornalistas no Maranhão. Blogueiro, ex-correspondente da Agência Folha e, na época do crime, repórter de política do jornal O Estado do Maranhão, Décio Sá foi executado com cinco tiros em São Luís em abril de 2012. Ele não foi levado para o meio do mato, para a beira deserta de um rio à noite. Jantava num bar da avenida Litorânea, zona turística da capital maranhense, diante das praias do Calhau e de São Marcos, quando o atirador o atingiu pelas costas, à queima-roupa: três balas na cabeça e duas no tórax.

Por que cinco tiros? Por que um matador profissional de boa pontaria não interrompe a ação no segundo ou terceiro tiro, a fim de ganhar tempo na fuga? Um exercício macabro que busca respostas para o inominável leva a supor que não apenas a morte do jornalista, mas a quantidade de tiros também pode ter sido encomendada, ou significa a marca registrada de um pistoleiro, contratado por um grupo de pessoas dispostas a dividir o pagamento do serviço. Décio Sá andava escrevendo sobre agiotagem contra prefeituras e outros crimes ocorridos no Maranhão, e entre as 12 pessoas denunciadas pelo Ministério Público por participação na morte estão três policiais (um deles foi vereador), dois empresários e um advogado. A Secretaria de Segurança Pública identificou uma arma calibre .40 usada na ação, de uso restrito da Polícia Militar.

Se as ameaças de morte a quem apura e denuncia irregularidades se concretizam no Maranhão com esse grau de covardia e crueldade, as reportagens investigativas por lá passam a correr o risco de extinção. Décio Sá não era um novato, tinha duas décadas de profissão. Talvez acreditasse que estava blindado por trabalhar para a empresa da poderosa família Sarney, ou por já ter sido correspondente de um jornal maior, do centro do país. Mas não estava protegido contra a fúria do crime organizado, ninguém está. Mesmo governos estaduais equipados com recursos humanos e tecnológicos chegam a desistir de investigar a corrupção policial com medo de mais chacinas. Um blog de política e o corpo humano são armas frágeis, que as balas destroem sem dó.

As intimidações à imprensa e à liberdade de expressão surgem de todos os lados nas comunidades fechadas e arcaicas, como a maranhense, onde o Estado de Direito é ainda fictício. Todos se protegem, e a independência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é outra ficção. Começa-se a investigar, por exemplo, uma indenização superfaturada por desapropriação de terras, na sede do órgão responsável pela área, em busca de dados oficiais, e um funcionário público imediatamente informa um “laranja” sobre a apuração em curso, surge das trevas um representante dos políticos ou produtores rurais a serem indenizados, o sujeito que vai fazer o serviço sujo da intimidação e da contrainformação. Telefones fixos nas redações trazem a chiadeira irritante dos grampos clandestinos: o setor de telecomunicações é um dos investimentos da família Sarney, mas nunca se sabe se a interceptação das pautas parte do governo, de um inimigo do governo ou de alguém querendo ser governo, com a troca de favores. Antes mesmo de uma reportagem exclusiva ser publicada, os intermediários dos entrevistados denunciados por alguma irregularidade partem para discretas ofertas de suborno, em dinheiro, em espécie, ou lançam mão de ações mais escandalosas, atormentando os repórteres com sons de disparos na frente do condomínio. Janelões trazem a brisa do mar naquele calorão, mas é melhor não morar no térreo.

No vasto interior do Estado, de segurança precária e estradas péssimas, as dificuldades de apuração se tornam ainda maiores, em temas como fraude eleitoral, leilão de adolescentes virgens, trabalho escravo, demarcação de terras indígenas, tráfico de drogas, de madeira. Traçado o roteiro da viagem, busca-se hospedagens alternativas, que não denunciem a presença de jornalistas. Inventa-se uma identidade provisória, pede-se que cada um na equipe seja guarda-costas dos demais e ainda falta uma última pergunta, diante do mapa das ruas, das estradinhas de terra do canavial verdejante no latifúndio:

– Ok, mas onde vão estar os jagunços?

Sobretudo na zona rural, uma das cenas mais tristes a revelar a coerção armada de revólveres e espingardas se dá junto aos trabalhadores em situação análoga à escravidão. As apreensões e multas do Ministério do Trabalho no tema revelam, há décadas, um expressivo número de maranhenses sofrendo com transporte e alojamento degradantes. É que lá o desespero por um emprego é maior: centenas de municípios só possuem como fonte de renda o serviço público, a pesca ou a agricultura de subsistência, e não existe transporte público. Quem arruma ocupação num local distante passa pela humilhação diária de pedir carona.

O pistoleiro Jhonathan de Sousa Silva, de 24 anos, fugiu na garupa de uma motocicleta depois de matar Décio Sá. Estava com o rosto descoberto. Foi preso dois meses depois e contou à polícia que recebera apenas R$ 20 mil dos R$ 100 mil prometidos pelo “trabalho”. Ele confessou, segundo a polícia local, dezenas de outros assassinatos por encomenda, realizados no Pará, sua terra natal, Maranhão e Piauí. A marca dos cinco tiros lembra a sua primeira vítima, ainda na adolescência. Uma das testemunhas da execução do repórter morreu de infecção generalizada depois de ser alvejado por cinco tiros, número transformado em grife letal da gangue.

A escala das violências é outra, no Maranhão. Um presídio que permite 62 assassinatos de presos num único ano e estupros de mulheres visitantes também por encomenda não é igual a nenhum outro presídio do país onde esse escândalo não tenha acontecido. A escala dos crimes contra a população mais miserável inclui o desvio de toneladas de dinheiro público, recursos privatizados há muito tempo em campanhas eleitorais e na administração federal, estadual e municipal. Não é exatamente igual ao Brasil, é bastante pior. Porque as denúncias são silenciadas, porque a maquiagem das tragédias insulta até comissões de congressistas, como aconteceu recentemente no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, porque as provas desaparecem e a revelação dos crimes e nomes dos criminosos pode resultar, enfim, numa cabeça liquefeita por vários tiros.


CRIS GUTKOSKI* | *JORNALISTA E MESTRE EM LETRAS, FOI CORRESPONDENTE DA AGÊNCIA FOLHA EM PERNAMBUCO E NO MARANHÃO

Nenhum comentário: