JULIANA BUBLITZ | JULIANA BUBLITZ/SÃO LUÍS (MA)
O COLAPSO MARANHENSE
Os maranhenses cansaram. Querem “menos lagosta”, em referência às recentes extravagâncias gastronômicas da governadora Roseana Sarney, e “mais segurança” no Estado conflagrado pela violência.
O tom do protesto que levou um grupo de jovens ao centro de São Luís, no fim da tarde de sexta-feira, também marcou o dia no Complexo Prisional de Pedrinhas – palco das decapitações que assombraram o país.
A diferença é que lá a manifestação foi solitária, sem cartazes e carro de som. Em um silêncio dolorido, quase constrangedor, mães, mulheres e irmãs de detentos fizeram fila para entrar no Centro de Detenção Provisória (CDP), que de provisório não tem nada. Era dia de visitas.
Na saída, à sombra do muro amarelo coberto com arame farpado, choro e desabafo. Maria José Lima, sacoleira, 48 anos, não pode mais dormir à noite. Seu filho de 23 anos foi preso ao ser flagrado em uma moto roubada. Está há quatro meses no CDP. Maria teme o pior:
– Aquilo lá é o inferno na terra. Tenho medo de dormir e acordar com ele morto.
Rosa dos Santos, comerciante, 34 anos, divide o mesmo sentimento. Às margens da BR-135, rodovia poeirenta que corta o conjunto de cadeias na periferia de São Luís, reconhece que o sobrinho está lá porque “matou um”. Não nega. Sabe que ele tem de pagar pelo que fez. Mas as degolas, “pode anotar aí”, insiste ela, “as degolas não são exceção”.
– Aconteceram em 2003 e em 2010. Aconteceram em dezembro. Vão acontecer de novo. Os homens continuam amontoados lá, tratados como bichos. Aquilo não reabilita ninguém – lamenta Rosa.
Maria, doméstica, 35 anos, nega-se a falar o sobrenome. Tem vergonha. Viajou seis horas de carro, de Teresina, no Piauí, para visitar o irmão de 36 anos, preso há dois meses por tentativa de roubo. Para ela, tudo é novo:
– Foi a primeira vez que entrei num lugar desses. Nunca imaginei que passaria por isso. E eu posso dizer: é uma selva. A gente vê as celas, aquele barulho todo, é de chorar.
Do outro lado da BR, uma agente penitenciária com 33 anos de carreira espia de dentro de uma porta de ferro, por meio de uma abertura do tamanho de um tijolo. Olha desconfiada. Já não acredita em mudanças.
– Me acostumei com a realidade da coisa, “num” sabe?
Sob o olhar impotente de Maria e incrédulo da velha agente, a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia maranhense, deputada Eliziane Gama (PPS), que faz oposição à família Sarney, entra no CDP para uma inspeção. Na volta, dá mais detalhes sobre o horror atrás das grades:
– Celas que deveriam ter no máximo oito pessoas estão com 22. Não tem nem cama. A situação continua grave. Se nada for feito, e rápido, eu não descarto novas rebeliões.
Na cidade de 1 milhão de habitantes, a sensação de que um novo ataque a ônibus – como o que matou a menina Ana Clara de Souza, seis anos – pode ocorrer a qualquer momento persiste. Nas ruas, até sexta-feira, não se via sinais do prometido reforço no policiamento.
– Tem um boato de que podem até tacar fogo em postos de combustíveis. Como é que a gente vai ficar tranquilo? – questiona um morador.
– Até os hábitos mudaram. Agora, às nove da noite fica tudo deserto – complementa o motorista José Santiago, 51 anos.
A sensação de insegurança levou o Movimento Acorda Maranhão, formado por gente que diz “não ter partido”, a organizar um ato público em frente à Biblioteca do Estado. Um dos responsáveis, o consultor Sandro Lima, 22 anos, quer a intervenção federal. Enquanto ele defende a medida até então improvável, um amigo pinta um cartaz em letras garrafais.
“Menos lagosta, mais segurança” é o que, no fundo, todo mundo quer.
AS RAÍZES DO COLAPSO
Descaso e superlotação de presídios ajudam a entender o caos - A crise nas cadeias do Maranhão tem origem na mistura de presos provisórios e condenados da Capital, com apenados do Interior do Estado, confinados no Complexo Prisional de Pedrinhas, na periferia de São Luís. Atualmente, somam cerca de 2,5 mil presos, metade do total do Estado em nove pavilhões em um só local, cujo déficit chega a 500 vagas. O confinamento forçado gerou conflitos e mortes, em especial, de apenados do Interior. Em 2008, emergiu a facção dos Baixadeiros (do Interior), depois batizada de Primeiro Comando do Maranhão. Logo após, presos da Capital formaram o Bonde dos 40 (usam pistola calibre .40).
NOVEMBRO DE 2010 - Os confrontos mais violentos começaram em novembro de 2010, quando 18 presos foram assassinados, três deles decapitados. Na época, o governo do Estado prometeu construir cadeias em cidades longe de São Luís.
OUTUBRO DE 2013 - Com o controle absoluto das nove cadeias do Complexo de Pedrinhas, presos passaram a executar desafetos. Em outubro, 13 detentos foram assassinados, e representantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cobraram ações do governo maranhense para evitar novas tragédias.
DEZEMBRO DE 2013 - Dias depois, a OAB ingressou com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos para forçar as autoridades a resolverem o problema. Em 16 de dezembro, a comissão emitiu determinou que o governo brasileiro tomasse providências para garantir a integridade dos apenados.
- Em 20 de dezembro, o juiz-auxiliar da presidência do CNJ, o maranhense Douglas de Melo Martins, inspecionou o Complexo Penitenciário de Pedrinhas. O relatório do magistrado apontou problemas como celas sem grades, extorsão a visitantes, e mulheres e irmãs de presos mais humildes sendo obrigadas a manter relações sexuais com líderes de facções. O magistrado também constatou omissões do Estado em apurar casos de tortura por parte de servidores públicos, ocorridos desde 2008. Um dos crimes teria resultado na morte de um apenado. A inspeção revelou a presença de doentes mentais cumprindo medida de segurança dentro de presídios por falta de local adequado.
JANEIRO DE 2014 - As revelações forçaram a intervenção da polícia militar no complexo. Revoltados, presos ordenaram atentados nas ruas. Em 3 de janeiro, quatro ônibus foram incendiados. A menina Ana Clara Santos Souza, de seis anos, morreu em decorrência de queimaduras. Cenas de decapitações de presos foram divulgadas pelo sindicato dos agentes penitenciários, contrariando ordem do governo do Estado. A governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PMDB), reagiu aos episódios, criticando o CNJ por divulgar “inverdades” e “incentivar” a crise. O governo federal anunciou um comitê de gestão integrado com o Judiciário para melhorar as condições de Pedrinhas, e determinou que a secretária de Direitos Humanos da Presidência da República avalie as propostas do CNJ. Ministério Público Federal (MPF) fez pedido de intervenção federal no Maranhão.
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