terça-feira, 22 de setembro de 2015

MITOS DO SISTEMA CARCERÁRIO



JORNAL DO COMÉRCIO 22/09/2015


Mitos do sistema carcerário: 'Boa parte das pessoas não têm o menor interesse em conhecer o funcionamento do sistema'


Jessica Gustafson



ANTONIO PAZ/JC

Juiz Sidinei Brzuska diz que execução da pena por crimes violentos precisa ser mudada

Em cima do sistema carcerário, se criam muitos mitos. Seja pelo desconhecimento ou desonestidade, são inúmeras as difusões de ideias entre a população de situações que não condizem com a vivência dentro dos presídios. É de se esperar que isso exista, pois boa parte das pessoas não têm o menor interesse em conhecer o funcionamento do sistema e preferiria que as penitenciárias fossem transportadas para outros planetas, se isso fosse possível. Entretanto, como sabemos, fechar os olhos não faz com que os problemas desapareçam. Para trazer luz a questões polêmicas, como a bolsa presidiário e o valor que cada detendo custa ao Estado, o Jornal do Comércio entrevistou Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais da Capital e responsável pela fiscalização do Presídio Central.

1. Bolsa Presidiário


Existe o auxílio-reclusão, que é um benefício previdenciário destinado aos dependentes dos detentos que tenham contribuído para o INSS. O valor pago mensalmente é único e calculado pela média dos salários recebidos pelos segurados de baixa renda. Se o último salário recebido pelo segurado for maior que R$ 1.089,72, sua família não poderá receber o benefício. A última pesquisa que li sobre isso dava conta de que aproximadamente 6% dos filhos de presos recebiam o auxílio. Se pegarmos só o universo das mulheres, na Penitenciária Madre Pelletier, acredito que seja entre 1% e 2%. Então, é insignificante. O que é uma pena. Se mais pessoas recebessem, esse seria um fator interessante de prevenção da criminalidade, pois, quando a mãe é presa, a criança fica ao desamparo. Percebemos que, quando essa presa tem o auxílio-reclusão, alguém se interessa pelo cuidado da criança e ela não fica na rua, jogada. Provavelmente, o filho já não tem um pai presente. Então, a probabilidade de delinquir no futuro é grande. Hoje, nós temos poucos presos segurados de baixa renda, pois a maioria não tem renda e não é segurado do INSS. Os comentários que vemos sobre o tema são um atestado de que as pessoas desconhecem o assunto. Quando a pessoa é contra o auxílio-reclusão, ela está dizendo que não sabe nada sobre isso.

2. A culpa é da Justiça

Na grande parte dos delitos em que a pessoa se envolve pela primeira vez, não se consegue, pela lei, mantê-la na prisão preventiva. Um exemplo é o porte de armas. Esse é um crime comum e, pela lei brasileira, tem pena de 2 anos. Então, o sujeito é primário, não tem antecedentes e, se condenado, receberá uma pena de prestação de serviços à comunidade. Vamos pegar agora o problema do tráfico. Hoje, um pouco mais da metade das prisões são por tráfico. Este é um tipo de delito que o que interessa é o comércio e o dinheiro. É quase um crime financeiro. O sujeito que é traficante quer, ao seu lado, pessoas "de bem", ou seja, sem antecedentes. Essa pessoa que fica exposta fazendo a venda tem que dar a aparência de ser uma pessoa boa. Se ele não tiver antecedente, a polícia vai revistá-lo e liberá-lo. Elas ficam ali com pequenas porções de drogas. Já sobre os que têm antecedentes, nós avaliamos o crime praticado antes e o cometido agora. Se ele tem um passado que envolve violência, a tendência é ficar preso. Isso é bastante comum com moradores de rua. Alguns têm 25 entradas no presídio, mas são pequenos furtos de ocasião, sem violência. O problema dele não é prisão, é social. Resolver pela lei penal não vai dar certo.

3. O Presídio é a universidade do crime

Isso não é totalmente mito. Se o sujeito chegar no presídio, como muitos chegam, sem uma base familiar, a prisão vai se tornar uma universidade. Acontece com um percentual bem grande. Não vai acontecer com um sujeito que já tem 30 anos, 40 anos, que cometeu um crime eventual e ingressou ali. Ele só vai sofrer com aquilo. Agora, o preso jovem, com baixa escolaridade, que não recebeu valores educacionais quando criança, que enfrentou problemas familiares, quando ele ingressa na prisão, passa a ser acolhido por um grupo e a se sentir parte dele. Neste aspecto, o presídio se torna uma universidade para o crime. Se olharmos os dados de ingressos, vemos que grande parte aprende a virar bandido dentro do presídio.

4. A legislação penal é muito branda

Acho que precisamos mudar a questão da violência, pois a lei está branda nesta área. A pena até poderia ser igual, mas com alteração da execução. Suponhamos que, em uma praça, existam duas pessoas vendendo maconha e crack. Elas estão desarmadas. A polícia chega ali e prende as duas. Condenados, é provável que recebam cinco anos por tráfico. Ficarão dois anos no regime fechado. Provavelmente, vão receber mais cinco anos por crime de associação e ficarão mais um ano presos. Então, serão três anos no regime fechado. Se as mesmas duas pessoas colocarem um revólver no rosto de alguém, dizendo que vão explodir a cabeça dele, roubarem e forem presas, pegarão cinco anos e quatro meses no regime semiaberto. A possibilidade desta pessoa tirar uma vida é muito grande. Isso teria que ser invertido para aumentar a nossa sensação de segurança. Eu tenho deixado esses jovens que assaltam com violência ilegalmente no regime fechado por 90 dias para ver se consigo conhecê-los melhor e também os seus familiares. Durante esse período, algumas pessoas me procuram para dizer que o jovem deveria estar no semiaberto. Mas isso não chega a 20% dos casos, que são os que têm alguém por eles. Os outros não têm ninguém. Se o prende e solta fosse totalmente verdadeiro, estariam todos na rua.

5. Privatizar o sistema carcerário é a solução

Eu conheço prisões privadas muito boas e que funcionam melhor. Eu sou contra a privatização do sistema como um todo. Acho que seria positivo ter umas duas ou três para ter o comparativo. Acho importante fazer o ciclo completo, no qual o preso fica no regime fechado no presídio privado, vai para o semiaberto privatizado, faz a empresa realmente ressocializar o detento, empregando ele, e depois cuida do regime aberto. Sem isso, é colocar dinheiro fora. Hoje, temos 30 mil presos, então, vamos colocar 5 mil no sistema privatizado. Essa situação daria até estímulo ao servidor penitenciário, que teria um referencial para reivindicar. Acho também que a lei brasileira não proíbe isso. O artigo 4º da Lei de Execução Penal diz: "O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança". Qual é a função básica do Estado? Proporcionar saúde, educação e segurança. Nós temos hospitais privados que funcionam bem, que estão ganhando dinheiro em cima da saúde e da doença. Daí, pode lucrar. Temos colégios particulares que lucram. Só não pode na segurança? Já temos guardas particulares e só na cadeia é que não pode? Vão lucrar em cima do preso, pois ninguém vai fazer caridade, e não tem problema nenhum nisso.

6. O 'prende e solta' agrava a criminalidade


Esse é um debate que precisa ser qualificado e ampliado. Nós já fizemos três vezes um levantamento e os resultados foram praticamente os mesmos. De cada 100 presos em flagrante em Porto Alegre, 40 nunca tinha estado na prisão antes. Nós chamamos eles de provisórios puros. De cada 100, 35 já estiveram no sistema, mas não têm condenação e estão respondendo ao processo. Agora, 25% são os reincidentes de fato. Estão cumprindo pena, estão na condicional, na prisão domiciliar, no semiaberto e cometem um crime novamente. Esse dado é verdadeiro e podemos comprovar isso pelo fato de que a população carcerária não para de crescer. Se fossem sempre os mesmos, ela ficaria estável. Se observarmos a população da Fase, ela é mais estável. Isso porque o adolescente tem uma vida curta, de 12 a 18 anos, e depois vira adulto.

7. Homicídio é o crime que mais leva à cadeia

Há um ano, busquei dados sobre isso e observei que, em um universo entre 8 ou 9 mil presos, pouco mais de 300 estavam lá por homicídio. No Central, a média de detidos por esse crime é inferior a 5%. Isso é motivado pelo fato de que não apuramos crimes de homicídio. Só, eventualmente, quando morre alguém mais importante ou em um lugar inusitado, se consegue uma prova mais consistente da autoria. Se acham que é guerra de tráfico, já pensam que não é preciso apurar. E muitas vezes não têm relação com o tráfico. Temos muitos homicídios em áreas conflagradas. Agora, quando morre alguém no bairro Moinhos de Vento ou Menino Deus, aí gera comoção. Deveríamos ter tolerância zero em relação a isso, não importando quem morreu.

Quando fizemos esse levantamento, apenas na galeria de presos pela Lei Maria da Penha, o índice de homicídio era de 14%. Neste tipo de crime, o Estado não precisa investigar a autoria, pois a própria família entrega quem matou. Na galeria da facção, que é supostamente a mais violenta, apenas 2,5% estavam lá por homicídios. Para muitas execuções também se utiliza o mesmo método do tráfico, que é pegar um primário para matar. Se não for pego em flagrante, não se pega mais, pois ele não tem ligação com quem morreu.

8. Menor infrator não é punido

Ele é mal punido. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) precisa de ajustes. A proposta que fazemos é justamente ajustá-lo. A adolescência vai de 12 a 18 anos. A pessoa, nessa fase da vida, está em desenvolvimento e isso não tem relação com saber o que é certo ou errado. Ele sabe o que é errado. Agora, a noção de tempo de um adolescente é diferente da do adulto. Quatro anos, para alguém de 40 anos, representa 10% da vida dele, pois medimos o tempo de acordo com o que já vivemos. Se pegarmos uma criança de dois anos, um ano para ela é a metade da sua vida, sendo a mesma coisa que 20 anos para a pessoa de 40. O ECA erra ao tratar o adolescente de 12 anos da mesma forma que o de 14 anos e o de 17 anos. Não podemos dar a mesma pena, é preciso uma graduação. Três anos de pena para um jovem de 12 anos é muito. Para um de 17, é pouco. Depois, é preciso estabelecer o tempo em relação ao crime. Hoje, o juiz só decreta a internação. Um erro muito grave é punir severamente um adolescente por um crime sem morte e violência. E eu me refiro aqui à questão do tráfico. A coisa mais fácil é usar alguém de 12 anos para fazer o transporte da droga. Não podemos punir severamente, pois ele já está sendo usado. Um dia, estava no plantão e pegaram um menino de 12 anos com um quilo de cocaína. Não tem como ele ser proprietário de uma quantidade de droga que vale R$ 30 mil, R$ 40 mil. Agora, a redução da maioridade só vai aumentar a minha pilha de processos. Não vai mudar nada.

9. Cada detento custa entre R$ 2 mil e R$ 3 mil ao Estado

O dinheiro que o Estado gasta é para manter um sistema. O que chega no preso mesmo é muito pouco, insignificante, são centavos. Se alguém entrar em uma galeria do Presídio Central, vai ver que quase nada foi fornecido pelo Estado. Talvez os colchões. A roupa não foi, quando queima uma lâmpada, é o preso que substitui, que faz a fiação. O dinheiro é consumido na máquina, ou seja, na viatura, no combustível, nos salários, nas horas extras. O que o pessoal faz é pegar o orçamento da Susepe e dividir pelo número de presos. Se ouvirmos os familiares, vão dizer que o detento consome, em média, R$ 600,00 por mês. Esse valor é para material de higiene, roupas e alimentação. Se o preso não tem quem leve para ele, quem fornece é o grupo criminoso que mantém a galeria. Depois, o grupo vai cobrar dele em reincidência.