"As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou ainda pior, aumenta". (Michel Foucault. Vigiar e Punir).
As relações de poder no sistema prisional
José Eduardo Azevedo*
Artigo
originalmente publicado na Revista da Associação de Pós-graduandos da PUC-SP.
São Paulo. Ano VIII, n.º 18, 1999, p. 29-35. Esta versão sofreu pequenas
alterações em sua redação.
O sistema
prisional está centrado preponderantemente na premissa da exclusão social do
criminoso, visto como perigoso e insubordinado. O confinamento e a vigilância a
que está submetido é estrategicamente ordenado por mecanismos de opressão. Isto
faz com que o Estado coloque nas prisões presos, às vezes, nem tão perigosos,
mas que no convívio com a massa prisional iniciam um curto e eficiente
aprendizado de violência, corrupção, promiscuidade e marginalidade, manifestada
quer no comportamento dos presos, quer no dos agentes incumbidos de preservar a
ordem interna.
Esta situação gera
o fenômeno que Donald Clemmer denominou de prisonização. Ao ingressar no
sistema penitenciário, o sentenciado deve adaptar-se, rapidamente, às regras da
prisão. Seu aprendizado, nesse universo, é estimulado pela necessidade de se
manter vivo e, se possível, ser aceito no grupo. Portanto, longe de ser
ressocializado[1] para a vida livre, é, na verdade, socializado para
viver na prisão[2].
As regras de
funcionamento da prisão são impostas ao preso com rigor e coerção. Este, por
sua vez, também dispõe de um conjunto de regras, chamado "código dos
presos" e que tem vigência entre eles e é aplicado por alguns sobre os
demais.
Dentro das penas,
o regime de controle disciplinar apresenta dois aspectos antagônicos: por um
lado, o policiamento tático, meticuloso, que controla uma possível
insubordinação, impondo ao preso o mecanismo de disciplina individualizante.
Por outro lado, a universalidade do controle disciplinar que lhe permite
conhecer seu protótipo ideal, bem como fabricar os mecanismos de poder. Assim,
ele adota um comportamento, uma personalidade de fachada, destinada a salvar as
aparências e livrá-lo do sistema prisional.
Descrente da
legislação vigente e em face da forma como é tratado, o preso vê com ceticismo
e desconfiança a perspectiva de sua recuperação pelas regras impostas através
do sistema prisional, e desenvolve uma aguda sensibilidade aos excessos de
punição que lhe infligem as precárias condições da prisão e as penas privativas
de liberdade.
Os funcionários
administrativos, tais como mestres de ofício, chefias, terapeutas, agentes de
segurança, enfim, todo o pessoal que trabalha ou circula no interior da prisão,
não dispõem, nem utilizam nenhuma arma de fogo, branca ou cassetete. Isto
porque a imposição rígida de obediência às normas regulamentares, bem como a
punição e a intimidação justificam a ausência de qualquer instrumento.
A eficiência do
agente penitenciário e dos técnicos pressupõe um grau de competência que só
pode ser adquirido através do contato prolongado com a massa carcerária[3].
Neste particular, porém, a relação é simétrica, já que os presos também
adquirem um saber prático através deste contato. Rotina, preferências,
temperamento, personalidade dos agentes e dos técnicos vão sendo destilados
pelos presos.
Segundo Michel
Foucault, não existe uma ordem preestabelecida na prisão, que gera e controla a
vida dos que estão sujeitos às normas institucionais. Os presos, por um lado,
os agentes, técnicos e outros funcionários do sistema prisional, por outro,
fazem concessões recíprocas, que produzem as redes de poder.
A partir destas
notas, vou concentrar minha atenção nas relações de poder na prisão. Esse é o
cenário a partir do qual pretendo construir algumas hipóteses a propósito dos
dilemas e desafios que se colocam à consolidação democrática da sociedade
brasileira.
O arquipélago
de confinamento
A regra número um
para o preso sobreviver na prisão é ser humilde, sem parecer ingênuo. Obedecer
à hierarquia é outra regra básica para quem pretende sair da prisão. Outra norma
é quanto menos falar, melhor. E por último, o preso nunca deve ficar devendo a
outro por muito tempo, pois estará correndo risco de vida.
A relativa
tranqüilidade na prisão depende fundamentalmente da disposição dos presos em
submeterem-se e cooperar espontaneamente com os regulamentos de disciplina e
segurança. No entanto, como observa Ramalho[4], não há cooperação sem
negociação.
Essa negociação
ocorre entre o preso e a autoridade legal, através de seus funcionários, em
particular o agente penitenciário. O espaço para a negociação pode ser bastante
amplo, desde o envio de uma simples correspondência ou a entrada de drogas no
presídio. Mas todas estão voltadas para a "corrupção da autoridade."
O alargamento da área para atividades ilegais pode ser o preço a ser pago pela
direção do presídio para a manutenção da ordem e a tranqüilidade na prisão.
À luz dos
problemas estratégicos demonstrados sobre a política penitenciária e sua
tecnologia corretiva, podemos avançar algumas conclusões: a prisão nada mais é
do que o prolongamento do saber/poder[5]. Toda sua estrutura converge
para a manutenção de uma rede de poder instituída para manter o controle, a
vigilância e a disciplina, o que a transforma em um arquipélago de confinamento.
Uma breve revisão
histórica explica que as práticas judiciárias e sua evolução no campo do
direito penal, definiam as funções da prisão como local de "penitência,
sofrimento e expiação." Foi esse o princípio no qual se basearam os
juristas e filantropos do século XVIII, como Howard, Bentham e Beccaria. Eles
desejavam substituir aquelas funções da prisão, e transformá-la em local de
"trabalho, disciplina, isolamento e de silêncio". Esta proposição se
concretizou e logo se disseminou por todo o mundo.
Estes pensadores
estavam preocupados, na realidade, com a legitimidade das prisões na percepção
pública, e sobretudo entre as camadas populares da sociedade.
Com efeito, a
legislação penal, desde o século XIX e de forma cada vez mais rápida no século
XX, foi buscar o controle social dos excluídos, incluindo-os numa massa de
marginalizados e rejeitados pela sociedade[6].
A sujeição do
sujeito
Enquanto aparelho
de penalidade corretiva, a prisão visa moldar os gestos e as atividades dos
criminosos. A prisão volta-se não para o sujeito de direito, mas para o sujeito
obediente, submetendo-o, diuturnamente, às ordens, às regras e à autoridade.
A análise pericial
é entendida pelo preso como uma série de armadilhas psicológicas, portanto, ele
age com grande ansiedade e apreensão. Sua grande estratégia consiste em
encontrar mecanismos para se livrar desse "labirinto." Essa
estratégia, segundo afirmação do preso da Penitenciária do Estado de São Paulo,
consiste em "se conter para conquistar alguns benefícios." Essa
brecha provocada pelo dilaceramento de relações entre o preso e o terapeuta
propicia a construção, por parte do primeiro, de uma identidade forjada de
aparências e simulações.
Neste momento o
jogo do poder começa a ser definido, os compromissos tácitos desafiam as regras
oficiais e a resistência dos presos em obedecer as normas instituídas exige uma
negociação. Esse é o ponto estratégico do sistema prisional.
Alguns presos
demonstram estar contendo-se, para forjar uma outra imagem de si e assim
conquistar alguns benefícios. Na verdade, ele mostra o que o terapeuta espera
dele, pois, afinal, seguindo as normas instituídas, o preso obtém ali o
"passaporte" para sua liberdade. Esse mascaramento ocorre, pois o
preso sabe que deve obedecer cegamente às normas instituídas, se quiser obter
um certo grau de reconhecimento por parte da direção e da equipe pericial do
presídio e se ver livre da prisão o mais breve possível. No entanto, essa
"obediência cega" é apenas aparente, mascarada, artificial, ou seja,
ele aprende desde logo a mistificar, a representar, encenar um papel procurando
a aprovação do outro e preservando sua própria identidade. Ele finge acatar,
assimilar, aprender e a respeitar, em menor ou maior grau, o que lhe for
transmitido da cultura geral da prisão.
Ao mesmo tempo o
agente de segurança, que na verdade mantém um contato direto e cotidiano com o
preso, manifesta seu ponto de vista com relação à avaliação da equipe pericial
da seguinte maneira:
"O agente de
segurança, apesar de ter uma visão contatual, diária, sua psicologia e campo de
visão são um tanto restritos, não chegam ao nível de um médico, um psicólogo.
Apesar de um tanto abreviado, ele tem uma visão maior, sua função permite
visualizar um campo maior. Os presos podem transparecer aquela 'casca
ideológica', mostrando um lado muito meigo, muito arrependido, e no fim das
contas, até passar um atestado para o próprio profissional que o está
analisando". (Agente de segurança).
Este discurso
denota uma estratégia na qual o agente de segurança "sabe" que os
técnicos não têm conhecimento e experiência suficiente para definir os
procedimentos de intervenção e que existem requisitos intersubjetivos que atuam
no sistema prisional. Essas relações diferenciais de forças saber/poder produz,
como observamos, a convicção de que o preso vive outra vida inteiramente
diversa da que transmite aos técnicos. Nesta ele acata, assimila, aprende e
respeita, realmente, tudo aquilo que é transmitido pelos seus companheiros,
através da adoção do linguajar local, dos hábitos e costumes do grupo. São as
regras da massa[7], as normas de convivência com os demais, que lhe
darão as condições de "sobrevivência" na prisão.
O agente de
segurança detém um conhecimento que não se ensina nem se transmite. adquire-se
na vivência cotidiana. Além disso, existe uma afirmação comum entre os presos
de que "depois deles, não há quem conheça melhor o sistema prisional do
que o agente de segurança." De fato, a administração do presídio é
exercida, efetivamente, pelo agente de segurança que conhece a essência e o
subterrâneo do presídio. Paradoxalmente, esse controle não é natural, existe
uma ordem pelo avesso que ultrapassa, em vários aspectos, a esfera legal
e envereda na área sombria do imprevisível. É no âmbito dos discursos que o funcionamento
da prisão e o mecanismo de poder se apresenta de forma cristalina, como veremos
a seguir, a partir do depoimento de um agente penitenciário.
"O
inexperiente vai ser sempre o prejudicado, porque qualquer coisa que venha
acontecer de errado ou que sai do controle da norma, é ele que vai segurar.
(...) Os mais experientes sabem disso e vão tirar proveito disso". (Agente
penitenciário).
De acordo com este
depoimento, notamos que o agente de segurança executa sua própria lei,
contribuindo na gestão dos ilegalismos e na produção da delinqüência. Daí,
apreendermos que o discurso competente do agente penitenciário se constitui num
artifício do poder, um componente de astúcia, que ultrapassa singularmente a
violência física, pois ela é vista pelo depoente como uma meta para se atingir
os mecanismos institucionais de controle social.
Os presos procuram
se acomodar nas celas da melhor maneira possível. Se a cela for coletiva, cada
espaço é bem delimitado e inviolável. Este sentido de territorialidade o preso
já aprende e desenvolve em sua passagem pelos xadrezes das delegacias de
polícia onde, apesar da superlotação habitual, ninguém ousa pisar no colchão do
outro, pois sabe que a reação será imediata. Muitas vezes, física.
É comum os presos
terem televisão e rádio. Aparentemente as administrações dos presídios não
colocam nenhum obstáculo para que eles se equipem com estas comodidades, mas
são classificadas como "favores". Portanto, marco simbólico de
privilégio, para alguns.
Teoricamente, o
trabalho penitenciário é considerado um dos elementos essenciais no processo de
ressocialização do preso, enfoque que se contrapõe à visão do passado, no qual
as atividades produtivas realizadas nas prisões se caracterizavam mais como um
recurso punitivo imposto aos encarcerados.
Ao lado da análise
do perfil psiquiátrico e do acompanhamento comportamental (psicológico) do
preso, o trabalho penitenciário ainda serve de componente para a diminuição do
tempo de reclusão, conforme estabelece o artigo 126 da Lei de Execução Penal,
nº 7.210/84.[8]
No entanto, a
maioria dos presos não trabalha. Primeiro porque não é oferecido trabalho para
todos, de forma que praticamente toda a massa carcerária vive na ociosidade e o
trabalho é privilégio de alguns. Conseqüentemente, os presos não podem diminuir
seu tempo de reclusão e ocupam esse período com atividades ilegais.
No mercado
informal do presídio empresta-se ou penhora-se os mais variados objetos,
vende-se e compra-se de tudo, como uma camisa, um ovo; troca-se dois maços de
cigarro por um sabonete, doze maços pelo aluguel de um televisor, etc.
Se parte dos
recursos que circulam na economia informal do presídio é destinada a
proporcionar ao preso algumas magras comodidades, como uma refeição
"melhorada", outra parte é desviada para o jogo de cartas, do bicho
ou de cavalos e para a compra de maconha, dois itens que nunca faltam nas
prisões.
A tolerância
pragmática da administração e dos agentes de segurança quanto aos ilegalismos,
em lugar da repressão, com sua política de "vistas grossas",
proporciona a inserção de familiares nessas atividades flagrantemente
criminosas, mas é condição de normalidade dos presídios.
Produtos de
higiene pessoal, roupa de cama, colchão e até uniforme são praticamente
escassos nos presídios, fora do alcance de muitos dos presos. Neste caso as
negociações envolvem o único provedor, o agente de segurança e o intermediário,
outro preso. O preso paga por esses produtos, em maços de cigarro ou em
dinheiro, levado por alguém de fora do presídio.
As estratégias
de poder em ação
As prisões são
objetos históricos significativos quando nos mostram, no rigor de seus rituais,
os limites que governam o exercício do poder. Notamos, desta maneira, que o
poder não é uma propriedade do Estado, mas uma estratégia de ação. Não é
atributo, mas relação de forças que passam tanto pelos dominados quanto pelos
dominantes, ambos constituindo singularidades.
O significado de
poder na análise foucaultiana é que ele produz a assimetria, em vez de derivar
de uma superioridade; ele se exerce permanentemente, em vez de se exercer de
forma intermitente; ele se irradia de baixo para cima, sustentando as
instâncias de autoridade legal; incentiva e faz produzir, em vez de esmagar e
confiscar.
Como vários
estudos têm mostrado, na prisão não há cooperação sem negociação e a
transigência do preso. Mas trata-se simplesmente de mais um dos dilemas
inscritos na natureza da prisão que produz criminosos, e prepara-os
convenientemente para ingressarem no mundo do crime. Os presos terão assim,
facilidade para adquirirem instrução para a prática do crime, e se associarem,
a fim de constituírem órgãos eficazes de delinqüência plural.
No curso das
interações, a negociação da ordem prisional não requer, nem supõe, a
manipulação de ações entre dominantes e dominados, mas a negociação de rituais
de forças marcadas por ações, reações, fluxos, influxos, resistências,
afetividade e solidariedade. Como salienta Michel Foucault, a prisão se
constitui numa "máquina abstrata" que opera tanto no domínio das
ações discursas como não-discursivas.
Nossa preocupação
foi compreendermos as relações discursivas. As ações e reações dos atores que
atuam na negociação da ordem prisional. Vimos, por exemplo, que o preso, a
despeito da precariedade moral que se supõe ter, não aceita o desvio que lhe é
imputado pelo sistema; ao mesmo tempo, ele convive com a situação de excluído,
pois sabe que não terá acesso a padrões socialmente valorizados de consumo e
ascensão social. Finalmente, o agente de segurança canaliza suas frustrações nas
ações de "favores", na flexibilidade da vigilância/disciplina e na
esfera das negociações de benefícios e privilégios com determinados presos.
Diante deste
quadro o sistema penitenciário sobrevive, apesar de toda sua ruína interna.
Referências
bibliográficas
AZEVEDO, José E. A
Penitenciária do Estado - As relações de poder na prisão, Dissertação de
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[1] Thompson observa que essa meta tem uma série
de denominações, tais como: terapêutica, cura, recuperação, regeneração,
readaptação, reabilitação, ora sendo vista como semelhante à finalidade do
hospital, ora como da escola. THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária.
Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 05.
[2] Ibidem, p. 23.
[3] RAMALHO, José Ricardo. Mundo do crime: a
ordem pelo avesso. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
[4] Idem.
[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
[6] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas
jurídicas. Série Letras e Artes - 06/74. PUC, Rio de Janeiro, 1979.
[7] RAMALHO, José Ricardo. Mundo do crime: A
ordem pelo avesso. op. cit.
[8] Segundo a Lei de Execução Penal nº 7.210/84,
o preso poderá remir parte da execução da pena, à razão de um dia de pena por
três de trabalho.
*Doutor em
Ciências Sociais (Política) pela PUC-SP; Pesquisador no Núcleo de Sociabilidade
Libertária – NU-SOL, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais –
PUC/SP e professor na Universidade Paulista (Unip – SP)
AZEVEDO, José Eduardo. As relações
de poder no sistema prisional. Disponível em:< http://sociologiajur.vilabol.uol.com.br/tajeduardopoder.htm>.
Acesso em: 28 set 2006.
fonte: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12663-12664-1-PB.htm
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