Documentos obtidos por ÉPOCA mostram que o PCC comandou o assassinato de policiais militares de dentro de presídios de São Paulo. No Rio, transcrições revelam que o grupo paulista age em conjunto com o Comando Vermelho
ALBERTO BOMBIG E HUDSON CORRÊA
DESAFIO
Cópia de processo da Justiça paulista. Presos do PCC mantêm seu poder dentro dos presídios
(Foto: Reprodução/Revista ÉPOCA)
O preso José Ademir Ramos de Lima gritava: “PCC!! Um por todos, todos por um!”. Eram 8 horas do dia 14 de setembro deste ano. Lima acabara de ser avisado por um agente carcerário do Centro de Detenção Provisória de Diadema, na Grande São Paulo, que deveria arrumar suas coisas. Seria transferido para uma cadeia de Mauá, cidade vizinha. Os gritos de Lima, referindo-se à facção criminosa Primeiro Comando da Capital, movimentaram seus colegas. Outros presos engrossaram o coro e foram advertidos pelos carcereiros de que cometiam uma infração ao entoar as palavras de ordem – e poderiam ser punidos. Lima respondeu: “É o PCC que manda nas cadeias, senhor!! É nóis que tá (sic). A gente vai gritar sim, senhor! Quem manda nas cadeias é o PCC, é o Comando. O bicho tá pegando na rua, já tem um monte de polícia morrendo. É nóis (sic) contra o Estado”. No mesmo dia, por volta das 9 horas, o policial militar Marco Santi foi assassinado.
Santi chegava em sua casa, em São Carlos, interior paulista, quando dois homens, um deles encapuzado, dispararam várias vezes contra seu carro, um Saveiro. O PM morreu no local e entrou para uma estatística tenebrosa: foi o 78º policial militar assassinado, com sinais de execução, no Estado de São Paulo neste ano. Em 30 de outubro, mais de um mês após o assassinato de Santi, o número de policiais assassinados já passava de 80. Naquele dia, o então secretário da Segurança Pública de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, admitiu o que processos da Justiça e do Estado já mostravam: as ordens para matar PMs partiam de líderes presos do PCC. Os documentos a que ÉPOCA teve acesso com exclusividade revelam que o PCC continua suficientemente poderoso para comandar ações criminosas de dentro das prisões paulistas.
Além das ameaças às autoridades feitas por Lima e outros presos, os documentos mostram integrantes do alto escalão do PCC comandando a compra de armamento pesado e o tráfico de drogas a partir da cadeia. Os dados dos processos provam que as prisões brasileiras são uma das principais bases de atuação do crime organizado, realidade que se tornou um dos maiores desafios do país. A partir de suas celas – que deveriam garantir a exclusão temporária de criminosos da sociedade e ser o ponto de partida de seu processo de regeneração –, integrantes das organizações criminosas controlam as próprias prisões, mantêm-se à frente dos negócios de suas quadrilhas, ordenam a matança de policiais e civis e impõem-se sobre a autoridade do Estado. Pior: tais atividades não se restringem ao Estado de São Paulo. A força e a capacidade do crime organizado desafiam o Poder Público brasileiro como um todo, não apenas em solo paulista.
DE DENTRO
O presídio de Presidente Venceslau, no interior paulista. Segundo investigação, presos ligados ao PCC comandaram compra de armamentos a partir da prisão (Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo)
Uma investigação feita por ÉPOCA no Rio de Janeiro mostra que integrantes de tradicionais quadrilhas fluminenses mantêm ligações com o PCC. Em abril de 2010, um traficante preso no Estado e ligado à facção conhecida como Comando Vermelho enviou, por meio de um telefone celular, a mensagem a seguir: “Você arruma para mim um fuzil G3, um fuzil sig-sauer 762, três lança-mísseis descartáveis, um míni (fuzil) AK-47, dez pistolas Glock calibre 40 com kit rajada, dez miras a laser, 20 revólveres 38, uma (metralhadora) ponto 30, 100 granadas, 500 caixas de munições. Mas busque o melhor preço com o mafioso dono dos materiais. Você sabe que queremos trabalhar grande”. A encomenda do integrante do Comando Vermelho Lenildo da Silva Rocha, de 39 anos, conhecido como RD, chegou a um integrante do PCC na fronteira com o Paraguai. A Polícia Federal interceptou a mensagem do aparelho celular do criminoso carioca, que cumpre pena no complexo penitenciário de Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. As investigações levaram à condenação dos envolvidos pela Justiça Federal no início deste ano. ÉPOCA conseguiu acesso à sentença, de 535 páginas, uma peça inédita e inusitada que sintetiza como a maior facção criminosa fluminense se associou à organização paulista para traficar armamentos e drogas.
O documento contém dezenas de mensagens de celular e transcrições de conversas ao telefone entre bandidos na cadeia. Traz provas de duas realidades constrangedoras para as autoridades brasileiras: as ações do crime organizado a partir de presídios não se limitam ao Estado de São Paulo, e as ações do PCC também já romperam as divisas do Estado, por meio de parcerias com outras corporações do crime. No caso de RD, três anos depois de ser preso, em 2007, ele continuava a chefiar a venda de drogas na favela Vila Ideal, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A região, vizinha à cidade do Rio, passou a abrigar boa parte dos traficantes expulsos de seus antigos territórios depois da pacificação de morros cariocas. A relação de RD com o PCC não respeitava nem as fronteiras nacionais. Além de requisitar armas, ele encomendava drogas a membros do PCC que atuam na Bolívia e no Paraguai. A escuta autorizada pela Justiça flagrou ainda uma perigosa novidade na ação dos criminosos. Eles compram quantidades expressivas de crack, e não mais a pasta-base de cocaína. “Mano, somos três sócios: RD, Marcelo do PCC e CH. Já estamos trabalhando há muito tempo... pegando 200 a 300 quilo (sic) de pó e crack”, diz outra mensagem enviada por RD de dentro do presídio de Bangu. A droga é transformada nas conhecidas pedras individuais, vendidas em cracolândias de cidades brasileiras.
Um delegado federal ouvido por ÉPOCA disse não descartar que os traficantes estejam produzindo crack nas fronteiras com a Bolívia e o Paraguai. O objetivo é reduzir o volume da droga e facilitar o transporte até os grandes centros. O crime organizado age como uma grande empresa: preocupa-se com eficiência, prazos de entrega, facilidade de transporte e, logicamente, o lucro. As pedras de crack são mais fáceis de carregar. Isso explica não apenas a opção por seu transporte, mas também a disseminação de seu uso e a dificuldade de apreensão. Após a investigação da Polícia Federal, RD, já condenado a oito anos de reclusão também por tráfico, recebeu uma sentença de mais de 40 anos de prisão. O processo foi enviado em setembro passado ao Tribunal Federal Regional. Durante o interrogatório, ele admitiu ser “corriqueiro” o uso de celulares dentro do presídio de Bangu. A Polícia Federal descobriu que, por quatro meses, em 2010, RD usara 19 números de celulares em nome de laranjas ou comparsas.
Ameaças – Os documentos em poder da Justiça paulista revelam que presos ligados ao PCC sentem-se suficientemente confortáveis para enfrentar a autoridade regularmente, com ofensas, ameaças e demonstrações de poder. O preso Cláudio Cognolato Batista, o Claudinho, também apontado como um dos líderes do PCC, foi alvo de um procedimento interno na Penitenciária Maurício Henrique Guimarães Pereira, em Presidente Venceslau, São Paulo. Claudinho foi acusado de ter desacatado e ofendido o diretor de segurança e disciplina do presídio, com termos chulos, comuns à realidade carcerária. “Você é um bunda-mole, seu arrombado. Se eu quiser, eu tomo esta cadeia inteira”, disse Claudinho, segundo a sindicância. A ofensa foi proferida depois de o agente constatar que a tela de proteção da janela da cela de Batista fora cortada. Ele e seu advogado negaram qualquer ameaça.
No caso das declarações de José Ademir de Lima, em Diadema, o secretário da Administração Penitenciária, Lourival Gomes, as classificou, em documento, de “gravíssimas”. “Subverteu a ordem e a disciplina da unidade prisional, além de apresentar alto risco para a ordem, a segurança do estabelecimento penal e da sociedade, já que, exercendo liderança negativa e sendo membro de organização criminosa, incitou demais detentos a fazer a apologia da facção criminosa denominada ‘PCC”’. Gomes pediu à Justiça a inclusão de Lima no Regime de Detenção Diferenciado, o RDD, que mantém o preso isolado.
A mensagem
Para os governos - Presos envolvidos com o crime organizado precisam ser isolados de outros
Para o Brasil - Os presídios precisam recuperar sua credibilidade, para o bem da segurança e da justiça
Outro documento reservado, obtido por ÉPOCA, revela que, ainda em 2002, a Justiça já alertava o governo do Estado sobre o fortalecimento do PCC dentro dos presídios paulistas. “Ainda pouco expressiva no início, a facção passou a ser respeitada pela população penitenciária através de métodos cruéis utilizados contra inimigos, como ameaças de morte e extorsão de familiares dos presos”, disse um ex-juiz corregedor de presídios. Segundo ele, o PCC aprimorou sua organização ao travar contato no cárcere com os nove presos estrangeiros responsáveis pelo sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989. Esse mesmo juiz relatou em documento que, em 2000, o Estado abriu negociações com líderes do PCC na Casa de Detenção de São Paulo, implodida dois anos depois pelo então governador, Geraldo Alckmin (PSDB). Procurado por ÉPOCA no mês passado, o juiz não quis comentar o teor de seu texto.
Além de colocar um preso no regime de RDD, as autoridades podem pedir sua transferência para outros presídios. Foi o que aconteceu com Francisco Antonio Cesário da Silva, conhecido como Piauí, levado de uma prisão em Avaré, São Paulo, para uma cela isolada de um presídio em Rondônia, após acordo com o governo federal. Muitos continuam no mesmo lugar. Até a semana passada, o carioca RD continuava cumprindo pena na mesma penitenciária onde conhecera e tornara-se sócio de um dos líderes do PCC. A Procuradoria da República chegou a pedir à Justiça sua transferência para um presídio federal, onde não há acesso a celulares. A solicitação ainda não foi atendida. A Secretaria de Administração Penitenciária do Rio afirma que os chefes das facções criminosas já foram transferidos aos estabelecimentos penais federais, graças a um acordo com a Vara de Execuções Penais, em vigor desde 2007. A autoridade informa não ter conhecimento de que RD esteja ativo na prisão. A Polícia Federal tem outra avaliação. Segundo a PF, as relações entre facções cariocas e o PCC continuam próximas. Em São Paulo, Marcos Camacho, o Marcola, que em 2006 comandou a onda de ataques contra as polícias, permanece no presídio de Presidente Bernardes. Segundo promotores, sua liderança sobre a organização segue inabalável. “Não existe líder aposentado do PCC”, afirma um promotor.
Para o narcotráfico fluminense, o PCC é importante por oferecer capilaridade nas fronteiras do Brasil com a Bolívia, Paraguai e Peru, de onde vêm drogas (cocaína e maconha) e armas pesadas. A penetração da organização paulista no Paraguai é tamanha, que o bando tem em suas fileiras um criminoso conhecido como “embaixador do PCC”. O paraguaio Carlos Antonio Caballero, de 46 anos, o Capillo, foi preso em 2007, em Ribeirão Preto, São Paulo, acusado de trazer ao menos 430 quilos de cocaína e meio quilo de explosivos para o Brasil. Em outubro de 2011, ÉPOCA revelou que Capillo é um dos novos barões da droga no continente. A investigação sobre os laços do PCC com o Comando Vermelho revela que, mesmo preso, Capillo não parou de atuar.
O PCC também acumula benefícios em sua relação com o Comando Vermelho. São Paulo tornou-se um entreposto para distribuição de drogas. Veículos com cocaína trazida das fronteiras vão para cidades paulistas, antes de chegar ao mercado consumidor do Rio. Especialistas que mapeiam o tráfico estimam que 80 toneladas de cocaína circulem por ano no Brasil. O quilo do entorpecente chega a US$ 10 mil na Região Sudeste. O negócio ilegal é uma indústria estimada em US$ 800 milhões. Para uma atividade de tamanha envergadura, tão valiosas quanto a própria droga são as armas. Segundo um relatório da PF enviado à Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo em março de 2011, interceptações telefônicas da Operação Leviatã flagraram líderes do PCC na negociação de armamentos. Roberto Soriano, o Betinho Tiriça; Abel Pacheco de Andrade, o Vida Loka; Alexandre Campos dos Santos, o Jiló; esses e outros apareciam à frente da compra de fuzis, granadas e drogas. Soriano, Andrade e Santos comandaram as negociações de dentro da Penitenciária 2 de Presidente Venceslau.
Procuradas pela reportagem, as autoridades paulistas não quiseram comentar as informações obtidas por ÉPOCA. O secretário Lourival Gomes informou que não concederia entrevistas. O novo secretário de Segurança de São Paulo, Fernando Grella, também não quis dar declarações. Ex-procurador-geral do Estado, Grella assumiu a secretaria no último dia 21, depois que a crise na segurança paulista derrubou Antônio Ferreira Pinto. O novo titular da pasta trocou o comando da Polícia Militar e da Polícia Civil. Manteve Gomes na Administração Penitenciária. Ambos têm em suas mãos uma importante missão, comum às autoridades de outros Estados e ao governo federal: impedir que presídios brasileiros continuem a ser sede de empreendimentos violentos do crime organizado. As prisões precisam recuperar sua razão de existir: devem ser o fim da linha para o crime, não sua origem.
ASSOCIADOS
Celas do complexo presidiário de Bangu, no Rio. A transcrição de conversa (acima.) mostra a associação entre o grupo criminoso carioca Comando Vermelho e a organização paulista PCC (Fotos: Jorge William/Ag. O Globo e reprodução)
Nenhum comentário:
Postar um comentário