domingo, 16 de março de 2014

DE CADA 10 PRESOS POR TRÁFICO, 7 ESTÃO FORA DA CADEIA



ZERO HORA 16/03/2014 | 07h02

De cada 10 presos por tráfico de drogas durante o ano passado no Rio Grande do Sul, sete estão fora das cadeias. Levantamento produzido por Zero Hora é baseado em 43 operações realizadas pelo Denarc

José Luís Costa



Sete em cada 10 presos por envolvimento com tráfico de drogas no Rio Grande do Sul em 2013 estão soltos. Os números resultam de um levantamento produzido por Zero Hora com base em 43 operações policiais realizadas no ano passado pelo Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc).

Entre 412 pessoas capturadas, 293 (71,1%) voltaram às ruas — respondem a processo em liberdade, estão foragidas ou foram absolvidas pela Justiça. Outras 119 (28,9%) seguem presas, entre elas, 30 condenadas.

O saldo das ofensivas do principal organismo de combate à venda de entorpecentes no Estado divide opiniões de autoridades e especialistas consultados por ZH. Mas a maioria concorda que brechas na legislação penal estimulam a expansão do crime e o vaivém nas cadeias. As regras criam facilidades para suspeitos permaneceram menos tempo presos, assim como também benefícios para a saída mais rápida depois de condenados.

O balanço das operações serve, de certo modo, de termômetro para medir a eficácia da repressão à criminalidade de uma maneira geral. Por causa do impacto social avassalador, o tráfico é considerado por especialistas como o "motor do crime".

Fomenta homicídios — a maioria das vítimas envolvida em guerra entre facções, mas, às vezes, também provoca mortes de inocentes —, furtos, assaltos, roubo de veículos, receptação, porte ilegal de armas, lavagem de dinheiro e corrupção. Além disso, forma exércitos de viciados, destruindo famílias, provocando doenças e forçando investimentos públicos em programas de tratamentos de saúde.

É um crime de lucro fácil e, portanto, nem um pouco difícil para os patrões das bocas de fumo cooptarem todos os dias soldados para vender drogas nas esquinas. Se um deles é preso pela manhã, à tarde já tem substituto, e o comércio de entorpecentes prossegue no mesmo ritmo.

Embora dois em cada três presos pelo Denarc no ano passado estejam do lado de fora das celas, o tráfico é o tipo de crime que mais leva gente para atrás das grades. Nos últimos cinco anos triplicou o número de adolescentes infratores recolhidos por tráfico na Fundação de Atendimento Socioeducativo.

Entre os adultos, quase metade dos apenados no Estado (48%) tem condenações por venda de entorpecentes. Considerando apenas a população prisional feminina, o índice de prisões por tráfico é bem mais elevado, 79%. Em 2006, por exemplo, o percentual geral de presos por tráfico era de tão somente 10,6%.

Um dos fatores que influenciam o crescimento dos crimes de tráfico seria o abrandamento das sanções ao usuários previsto na lei de tóxicos sancionada há oito anos.

— O mercado de drogas se expandiu e surgiram inúmeros novos traficantes, aumentando os pontos de venda de drogas e as prisões — analisa o delegado Heliomar Franco, diretor de investigações do Denarc.

O mapeamento das prisões em 2013 também revela curiosos contrastes. Entre os encarcerados, dois deles punidos com seis anos de prisão porque foram pegos com apenas 6,6 gramas de cocaína. E, entre os libertados, um homem capturado cinco vezes em 2013 sob suspeita de tráfico, mas que segue nas ruas.

O levantamento também expõe falhas que emperram um julgamento e contribuíram para livrar das grades, ao menos provisoriamente, uma quadrilha internacional, acusada de despejar toneladas de maconha em Canoas e cidades da Região Metropolitana.

Jovem foi preso cinco vezes no ano passado

Entre os 412 presos envolvidos com tráfico de drogas no ano passado, um chama atenção pelo entra e sai na cadeia. Usuário de drogas desde adolescente, sem emprego fixo, morador de um vila na zona norte da Capital, um homem de 21 anos foi preso em flagrante cinco vezes em 2013 sob suspeita de venda de entorpecentes. Entretanto, segue livre, sem condenações, apesar de reiteradas capturas pelo mesmo tipo de crime.

Em pelo menos duas vezes a polícia apreendeu pequenas porções, 10 pedras de crack e 15 buchas de cocaína, que pertenceriam ao suspeito. Na primeira prisão, em fevereiro, a falta de um laudo, comprovando que a substância apreendida era, de fato, entorpecente, levou a 2ª Vara Criminal do Fórum Central da Capital a rejeitar a denúncia do Ministério Público, que recorreu, e o processo está em discussão no Tribunal de Justiça do Estado (TJ).

Um dia após ser solto, ele voltou a ser preso, mas se livrou de punição porque foi absolvido, em abril. Veio a terceira prisão, em maio, e ele voltou a ser inocentado em setembro, quando voltou às ruas. Em ambos os casos, a Justiça entendeu inexistir prova da posse da drogas com o réu.

Em novembro, o homem foi preso pela quarta vez. Saiu do Presídio Central de Porto Alegre quatro dias depois, beneficiado com o direito de responder ao processo em liberdade. Em 13 de dezembro, ocorreu a quinta prisão do ano. Acabou novamente solto, uma semana depois, para responder ao processo em liberdade.

Antes disso, em 2011, o homem tinha sido condenado por tráfico, punido com dois anos e meio de prisão em regime aberto. Para o desembargador Túlio de Oliveira Martins, presidente do Conselho de Comunicação do TJ, esse é o típico caso em que pesa a favor do réu o entendimento de que ele é inocente, até ser julgado em todas as instâncias judiciais.

— O STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que só com trânsito em julgado em definitivo é que pode ser quebrado o princípio da inocência.

As leis e as críticas

— A repressão ao tráfico obedece a uma regra específica, a Lei 11.343, sancionada em agosto de 2006, em substituição à Lei 6.368, de 1976, considerada ultrapassada.

— A nova regra instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, definindo medidas diferenciadas para traficantes de drogas, punidos com penas de prisão, e para consumidores, passíveis de sanções mais leves como prestação de serviços comunitários, comparecimento a cursos educativos ou simples advertência, além de ter direito a inclusão em programas de recuperação.

— O pontos mais contestado por juristas é o fato de a lei deixar margem à dúvida na hora de distinguir a situação de uma pessoa - se traficante ou consumidora - quando flagrada com droga. Segundo a lei, cabe ao juiz avaliar a situação social e os antecedentes da pessoa, além da quantidade de drogas e as condições da ação policial. Interpretações divergentes têm gerado prisões de usuários que, depois, acabam sendo soltos.

— Um outro aspecto criticado é a possibilidade de traficantes terem a pena diminuída em até um sexto em se tratando de réu primário, sem envolvimento com o crime organizado. Em caso de condenação por seis anos, por exemplo, o traficante fica um ano preso em regime semiaberto.

— Em vigor desde 2011, a lei 12.403, torna mais difícil mandar para trás das grades suspeitos de determinados crimes quando capturados em flagrante ou por meio de prisão preventiva. Antes de decretar o encarceramento de um suspeito, o juiz deverá analisar a possibilidade de aplicar nove medidas alternativas, para só depois optar pela prisão preventiva.


Repercussões

Heliomar Franco, delegado da Polícia Civil, diretor de investigações do Denarc - Trabalhamos para que 100% ficassem presos. Mas, infelizmente, não é assim que estabelece a lei. Os números apresentados, considerando a estrutura do nosso departamento, demonstram elevado grau de produtividade. As provas produzidas nos inquéritos levaram os indiciados à prisão, o que é extremamente meritório. A prova, portanto, era boa na fase pré-processual, pois já havia sido avaliada pelo juiz e pelo promotor.

Ricardo Breier, advogado, secretário-geral da OAB/RS - Quando existe investigação prévia, com provas robustas, imagens, escutas telefônicas, os suspeitos ficam presos. Mas a maioria dos casos é de flagrante. A lei não é dúbia, e usuários acabam sendo considerados traficantes. O juiz precisa analisar com mais profundidade os casos, sob pena de banalizar as prisões e depois ter de soltar as pessoas.

Túlio de Oliveira Martins, desembargador, presidente do Conselho de Comunicação Social do Tribunal de Justiça do Estado - As polícias trabalham bem. O saldo das prisões é absolutamente coerente com as leis, extremamente brandas. Quem faz a lei é o eleitor, ao eleger seus representantes. Grande parte da legislação foi feita por quem sofreu a repressão da ditadura. As leis têm tantos sistemas de garantias e formalidades, parecendo querer proteger pessoas de perigos que já nem existem mais.

João Pedro de Freitas Xavier, promotor, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do MP - Os números indicam que algo não vai bem. Pela lógica, deveria ter mais presos. Sabe-se que, de um modo geral, o tratamento penal tem sido pelo viés liberal, com concessão de liberdade provisória, baseado em entendimentos questionáveis e não prevalentes. É um tema que enseja debate, a sociedade cobra por isso. O combate ao tráfico é uma das prioridades do MP.

Sérgio de Paula Ramos, psiquiatra, especialista em dependência química e coordenador técnico do Centro de Recuperação de Dependência Química Villa Janus - A lei de tóxicos não foi implementada no vértice prevencionista, e faltam políticas públicas na escola, na universidade, nos espaços sociais. Tem muita gente presa porque o tráfico anda solto. Estão enxugando gelo. Prendem um na esquina, logo surge outro para ocupar o espaço, que também vai ser preso, e assim por diante.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - É resultado dos serviços públicos desenvolvidos por uma justiça criminal assistemática, corporativa, morosa, negligente, leniente, permissiva e sem compromisso com a população e nem com os presos provisórios ou com os apenados. Uma justiça amparada por leis condescendentes que estimulam a impunidade do crime, elaboradas por representantes políticos que se lixam para o povo e para a justiça, preocupados apenas com seus interesses em cargos, privilégios, salários e manutenção de poder. Uma justiça fraca que sofre com o descaso, com insuficiência de juízes, funcionários e varas criminais e voltada apenas à suas funções e ao atendimento de interesses corporativos, sofrendo uma forte influência partidária que amarra o braço que deveria sustentar a espada da coatividade na aplicação das leis, exigir obrigações na execução penal e orientar suas funções para a supremacia do interesse público e para o reconhecimento da função essencial e auxiliar exercida estratégia, tática e tecnicamente pelas forças policiais e prisionais.

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