segunda-feira, 24 de março de 2014

AS PRISÕES BRASILEIRAS SE PARECEM COM AS RUSSAS

REVISTA ISTO É ENTREVISTA, N° Edição: 2313 | 21.Mar.14 


Roy King - "As prisões brasileiras se parecem com as russas"

Um dos maiores especialistas do mundo em sistema carcerário, o pesquisador da Universidade de Cambridge diz que nos dois países os criminosos controlam as cadeias

por Raul Montenegro




PODER
"Quando as autoridades não agem, há um vácuo
para ser preenchido. É aí que o PCC entra"

O professor britânico Roy King é um dos maiores especialistas do mundo em sistemas prisionais. Aos 74 anos, continua na ativa, apesar de ter se aposentado duas vezes. Pesquisador honorário do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, ele já passou por instituições como Yale e London School of Economics. King compara a realidade carcerária no Brasil com a de outros países e chega a um diagnóstico extremamente negativo. O professor vê semelhanças entre os presídios brasileiros e os russos, onde fez pesquisas depois do desmantelamento da União Soviética. Em ambos os casos, as prisões não são controladas pelo Estado, mas pelos próprios criminosos – que preencheram os vácuos de poder deixados pela omissão das autoridades. King falou à ISTOÉ em recente visita a São Paulo, onde participou de um fórum internacional sobre segurança pública.


"No Brasil, há exploração e uma divisão de classe entre os presidiários.
Alguns têm penteados elaborados e tênis de marca e outros mal têm o que vestir"


"Na Inglaterra, em 1993, dois garotos de 10 anos mataram um
menino de 2. Foi um momento ruim da nossa Justiça.
Eles foram julgados numa corte para adultos"


ISTOÉ - Como o sr. avalia as prisões brasileiras?

ROY KING - Elas são bem diferentes das britânicas, mas têm muito em comum com as russas. Nas cadeias brasileiras, os agentes carcerários nunca entram nas celas sem autorização dos criminosos, o que quer dizer que o controle efetivo do que acontece lá dentro está nas mãos dos presidiários. Na Rússia, os guardas também não podem entrar nos dormitórios, cada um deles é controlado por um chefe, responsável pela disciplina lá dentro. Esse líder pode ser apenas um prisioneiro que é mais forte do que os demais. Além disso, presídios brasileiros e russos são superlotados. Na Rússia, conheci um local onde cerca de uma centena de presos dormiam juntos em plataformas coladas à parede da sala, como num navio negreiro.
ISTOÉ - Isso ocorre desde a época da União Soviética?

ROY KING - Essas penitenciárias existem desde antes da Revolução Russa. Então, pode ser que o sistema exista desde o regime czarista. Nos antigos gulags (campos de trabalho), as atuais colônias penais, é diferente. Há dormitórios com capacidade para até 100 prisioneiros que não são superlotados. Esses lugares são controlados por um único oficial, que não conta sequer com alarme. É tudo muito organizado, com pouquíssimos episódios de violência. Uma possibilidade é que isso aconteça porque os presidiários temem ser enviados para a Sibéria, onde as pessoas morrem de frio. Diferentemente do Brasil e das demais cadeias russas, lá não há um conluio entre guardas e presos.

ISTOÉ - Como é a realidade inglesa?

ROY KING - Em todos os países há uma tensão entre autoridades e prisioneiros. Mas no Reino Unido a maioria dos detentos considera sua punição justa. Muitas vezes eles afirmam que não cometeram os crimes pelos quais foram condenados, mas admitem que já haviam praticado outros e escaparam. Então, dizem coisas como: “Às vezes se ganha, outras se perde” e veem isso como um fato da vida. Eles respeitam a autoridade dos agentes carcerários, mesmo quando tentam subvertê-la. De uma maneira geral, consideram o sistema justo.

ISTOÉ - Por que no Brasil é diferente?

ROY KING - No Brasil, as prisões recebem muito pouco do Estado, e os presos são completamente dependentes daquilo que é trazido pelos familiares. É muito comum que eles se vejam controlados pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) ou outros grupos que controlem e redistribuam aquilo que entra nas penitenciárias. E, mesmo que isso seja apresentado como uma espécie de sistema socialista “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades”, há exploração e uma divisão de classe entre os presidiários. Numa cadeia brasileira, você vê que alguns detentos têm penteados elaborados e tênis de marca, enquanto outros mal têm o que vestir.

ISTOÉ - O PCC existe por causa da ausência do Estado?

ROY KING - Sim. Já ouvi políticos dizendo que criminoso bom é criminoso morto. Além disso, aqui as desigualdades são imensas e existe uma subclasse de onde vem a maioria dos que estão no sistema penitenciário. Como ninguém se importa com eles fora dos presídios, ninguém se importa com eles lá dentro também. É aí que o PCC entra. Quando as autoridades não agem, há um vácuo para ser preenchido. Se o Estado garantisse condições carcerárias mínimas, os detentos veriam o sistema com alguma legitimidade e a facção perderia um pouco de sua força.

ISTOÉ - Sabe-se que existe colaboração entre presos e carcereiros nas cadeias brasileiras.

ROY KING - Sim, e isso é uma das coisas que mais me interessam. Entrevistei detentos que contaram terem sido mantidos reféns e torturados por membros de facções dentro de seus próprios pavilhões. Essa situação não poderia acontecer sem a conivência dos guardas. E existe uma aceitação disso pelas instituições.

ISTOÉ - Por que os guardas agem dessa forma?

ROY KING - Os agentes carcerários são tão mal pagos e mal treinados que seria impossível para eles comandar a prisão sem ajuda dos detentos. Mais ainda: no Brasil existem 200 prisioneiros para cada guarda. Na Inglaterra, há um grupo de cinco para 50 prisioneiros, os agentes conhecem um pequeno grupo de presos muito bem. Assim, eles têm uma boa ideia do que está acontecendo dentro da cadeia.

ISTOÉ - A situação carcerária do Brasil mudou muito desde que o sr. conheceu o País?

ROY KING - Em 1996, estive no Brasil pela primeira vez e escrevi um relatório expressando otimismo. A população carcerária era proporcionalmente quase do mesmo tamanho da britânica e a economia do País começava a se fortalecer. Desenvolvi um programa para multiplicar por três o número de agentes prisionais como o primeiro passo para colocar tudo sob controle. Em 20 anos, o número de detentos no Brasil disparou, e estou certo que o número de guardas não subiu na mesma proporção. O País não foi tão bem quanto poderia.

ISTOÉ - Lidar com a superlotação construindo mais prisões é o melhor caminho?

ROY KING - Se você conversar reservadamente com qualquer diretor de penitenciária responsável na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, ele dirá que metade dos seus detentos não precisaria estar ali. Então, nós precisamos achar meios de trazê-los para fora. Na Inglaterra, desenvolvemos um modelo que não funcionou muito bem: alguns políticos criaram medidas para tirar pessoas não violentas dos presídios e tratá-las junto à comunidade. Mas, para não serem acusados de pegar leve com o crime, disseram que encarcerariam os mais perigosos por ainda mais tempo. Quando eu comecei minha carreira, o tempo médio cumprido em custódia por um réu condenado à prisão perpétua antes da condicional era de nove anos, hoje são 17. Por causa disso, as cadeias estão acumulando mais desses presos. Essa política não resolveu a crise da população carcerária no País – e a sociedade não está ficando mais segura porque eles estão trancados lá dentro.

ISTOÉ - O que funciona?

ROY KING - Não podemos eliminar totalmente o crime, mas cada nação tem que achar um caminho para lidar com os crimes que a afligem. No Reino Unido, demoramos 30 anos para chegar à situação em que estamos hoje. Então, vai demorar outros 30 anos para sair dela. Quem está inserido numa sociedade e tem algo a perder não comete crimes. Precisamos inserir as pessoas na sociedade para que elas tenham comprometimento com os demais e perspectivas razoáveis para o futuro. Isso significa melhorar a economia e a educação.

ISTOÉ - E para aqueles que já cometeram infrações?

ROY KING - Há vários sistemas de recuperação que fazem com que criminosos vejam suas vítimas como seres humanos e entendam as consequências de suas ações. O problema é que esses programas costumam ser feitos em pequena escala. Vejo que nós continuamos considerando bandidos aqueles que já deixaram a prisão. Quando pago minha dívida no banco, não sou mais um devedor, minha ficha está limpa e eu volto a ser um cidadão comum. Se reduzíssemos todas as sentenças em um ano, poderíamos dar aos prisioneiros o dinheiro economizado para que eles pudessem pagar os primeiros meses de aluguel, comprar comida e se integrar de volta à sociedade. Hoje, não lhes restam muitas alternativas.

ISTOÉ - Como a Inglaterra lida com o menor infrator?

ROY KING - Jovens de 10 a 17 anos podem ser responsabilizados criminalmente, mas nenhum adolescente menor de 15 anos pode ir para a cadeia, a não ser em circunstâncias especiais. Nós tivemos um caso terrível em 1993, quando dois garotos de 10 anos (Robert Thompson e Jon Venables) sequestraram e mataram um menino de 2 anos (James Bulger). Não foi o melhor momento da nossa Justiça porque eles foram julgados numa corte para adultos, o que significa que o caso se tornou público e as identidades deles ficaram conhecidas. Isso não aconteceria numa corte juvenil. Por causa disso, foram dadas a eles novas identidades para que tivessem uma chance de recuperação.

ISTOÉ - O sr. conhece as instituições para menores no Brasil?

ROY KING - Sim, estive numa prisão juvenil e sem dúvida foi o pior lugar que já visitei em minha vida: a de Imigrantes, em São Paulo, já desativada. Os adolescentes dormiam em todos os lugares disponíveis na cela, até debaixo do chuveiro. Os colchões eram cortados para serem encaixados em qualquer espaço disponível. Era horrível.

ISTOÉ - O que deve ser feito com psicopatas e outros prisioneiros com poucas chances de recuperação?

ROY KING - Nós não usamos mais o termo psicopata. Hoje, falamos em pessoas com transtornos de personalidade perigosos. Na Inglaterra, lidamos razoavelmente bem com esses grupos. O problema em colocar essas pessoas em instituições psiquiátricas é que os médicos não viam possibilidades de tratamento e elas eram apenas trancadas lá dentro. Nas prisões, era extremamente difícil administrá-las. Agora, os presídios têm pegado dinheiro do sistema de saúde e construído unidades para pessoas com transtornos de personalidade. Nessas unidades, pode haver um funcionário para cada dois presos. Para outros detentos perigosos que não possuem distúrbios, nós desenvolvemos pequenas unidades para não mais de cinco ou seis presidiários. Lidar com essas pessoas na prisão não é barato, mas compensa em termos de estabilidade do sistema.

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