domingo, 6 de outubro de 2013

TORNOZELEIRA DO SEMIABERTO


ZERO HORA 06 de outubro de 2013 | N° 17575

ANDRÉ MAGS*

SEMIABERTO. 24 horas com tornozeleira

Para testar as tornozeleiras eletrônicas usadas por presos do regime semiaberto, um repórter de Zero Hora, autorizado pela Justiça, utilizou o equipamento durante 24 horas. Nas oportunidades em que saiu da área estabelecida pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), agentes entraram em contato e o sistema funcionou

O celular tocou às 13h26min, quando a quinta-feira ensolarada se acinzentava e o carro seguia no caminho do Parque da Redenção, em Porto Alegre. Uma voz feminina, repetitiva, mas mais séria e resoluta, avisou:

– O senhor gerou uma ocorrência na Avenida Oscar Pereira. Por favor, o senhor tem que voltar imediatamente a sua zona. Já enviamos uma mensagem às 12h32min.

Acomodado no banco traseiro do veículo, consulto a caixa de entrada do celular. Lá estava a mensagem. Minutos antes, eu havia deixado o Albergue Pio Buck com uma tornozeleira eletrônica presa à perna. Uma segunda mensagem aparecia logo depois, às 13h36min, com praticamente o mesmo texto da anterior, mas em letras maiúsculas, como se o autor estivesse aos gritos: “CENTRAL DE MONITORAMENTO SUSEPE INFORMA: RETORNE PARA SUA ÁREA DE INCLUSÃO”. Eu estava no limiar de me tornar um foragido.

Os procedimentos eram reais, bem como pedira à Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe), que me instalou o equipamento no tornozelo esquerdo. A ideia era mostrar ao leitor de Zero Hora como é usar o aparelho por 24 horas, testá-lo o mais próximo da realidade e ver a reação das pessoas nas ruas diante do dispositivo.

Não obedeci à ordem de voltar à zona onde eu poderia circular, ou seja, o trabalho no prédio de ZH, a casa no bairro Cidade Baixa e duas regiões liberadas, o Parque da Redenção e um shopping. O veículo continuou o trajeto. Nove minutos depois, a moça da Susepe ligou.

– O senhor deve retornar para a sua área.

– Está bem.

Outra vez, nada fiz. O telefonema seguinte ocorreu dois minutos depois.

– Tá bem, vou retornar ao trabalho, mas antes preciso ir a outros locais – respondi.

– Quanto tempo vai levar?

– Quanto tempo? Não sei...

– Eu preciso saber para pedir para autorizarem – insistiu a agente da Susepe.

– Autorizarem? Mas estou fazendo um teste. Como faço para me liberar? Assim não consigo trabalhar.

– O senhor vai ter que falar com o social.

– Me dá o número.

– No momento, está ocupado.

Parecia o começo de um labirinto kafkiano – poderiam simular a minha prisão? Na verdade, era tudo parte do teste. Telefonei para o coordenador do Programa de Implantação do Monitoramento Eletrônico no Estado, Cezar Eduardo Cordeiro Moreira. Combinamos que eu não receberia mais ligações e poderia continuar avançando por áreas “proibidas”. A funcionária da Susepe não voltou a ligar. À noite, porém, tudo recomeçou quando tentei retirar o dispositivo.

– Estamos pedindo para o senhor comparecer urgentemente à Secretaria de Segurança – avisou um agente.

– Por quê?

– Gerou uma ocorrência de tentativa de rompimento da tornozeleira.

– Estou em casa, a tornozeleira está funcionando.

– Bem, há ocorrência e solicitamos o seu comparecimento, urgente. Se o senhor não comparecer, uma viatura irá até aí para levá-lo ao Presídio Central.

A tensão se desfez quando reforcei que fazia um teste e que não iria continuar tentando remover o equipamento.

Dispositivo foi ignorado nas ruas

De início, a tornozeleira é incômoda. Pode machucar a pele se for colocada sobre as protuberâncias ósseas do tornozelo, ainda mais se estiver apertada. Não é pesada, mas provoca desconforto ao caminhar. Leva algumas horas até se encontrar o jeito certo de acomodá-la no tornozelo.

A tornozeleira interfere psicologicamente. A impressão é de vigilância intermitente. Quando se começa a usá-la, parece que sempre há alguém olhando para quem está com o aparelho. O psicológico parece ser um fator arrebatador no controle dos apenados nesse sistema – talvez isso ajude a explicar por que as evasões são menores do que no semiaberto tradicional.

– É mais fácil de controlar do que o muro físico, que os presos pulam – diz o juiz Sidinei Brzuska, responsável pela fiscalização das casas prisionais da Região Metropolitana.

Há 28 mil presos, hoje, no Estado, e 17% estão no semiaberto, segundo o juiz. Mas esse regime produziu 22 mil fugas no Rio Grande do Sul em três anos. A média de evasões nas casas do semiaberto é de 133%, isto é, a capacidade total do estabelecimento mais 30%. E há lugares em que esse índice superou em três vezes a capacidade.

Na rua, poucos percebem o objeto, mesmo se a pessoa estiver de bermudas. No teste de ZH, circulei vestido assim por um shopping center, entrei em uma loja para provar um tênis, fui ao caixa eletrônico de um banco, caminhei pela Redenção, sentando em bancos ao lado de frequentadores, almocei em um restaurante na Avenida Venâncio Aires e parei na Rua da República, à noite, com a luz piscando no equipamento em meio ao movimento típico da Cidade Baixa. Sem chamar a atenção, a não ser de alguns olhares rápidos e sérios (ou curiosos?) que iam dos pés ao rosto.

No Centro, o povo e a polícia não tiveram nenhuma reação a minha presença enquanto a banda da Brigada Militar tocava Show das Poderosas na Esquina Democrática. Foi somente mais tarde, ao final do teste nas ruas, que alguém reparou e me chamou a atenção. Foi uma auxiliar de limpeza que mora no morro Santa Tereza e trabalha no prédio de ZH. Ela disse que está acostumada a ver pelo menos quatro conhecidos portando a tornozeleira na região onde reside.

Devolvi a tornozeleira à Susepe no início da tarde de sexta-feira. Ao longo da jornada, houve 13 infrações, entre descumprimentos, incursões em áreas não liberadas e uma tentativa de rompimento da tornozeleira. Recebi quatro telefonemas e duas mensagens. Será que a atenção com os presos é a mesma que tiveram comigo?

*Colaborou Letícia Costa


DO QUE DEPENDE PARA FUNCIONAR

OS AGENTES - A eficiência depende da atenção de quem monitora os apenados. Todos os passos podem ser acompanhados pelos agentes.

O APARELHO - Durante o teste ZH não apresentou problemas. Mesmo preso ao tornozelo, o equipamento passou despercebido pela população.

O PRESO - Se o detento não perceber que é melhor estar em liberdade vigiada a permanecer numa prisão, não funciona. É fácil fugir.



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