domingo, 1 de julho de 2012

DENÚNCIAS DO CÁRCERE: UMA HISTÓRIA ANTIGA

Denúncias do cárcere. Detentos da Casa de Correção do Rio de Janeiro publicaram jornal em 1894 com críticas ao governo e queixas sobre o presídio - Christianne Theodoro de Jesus. REVISTA DE HISTÓRIA, 04/4/2010

Alguns presos levam bebidas alcoólicas para as celas e circulam livremente pelo presídio, enquanto outros mal têm acesso ao serviço médico e a uma alimentação adequada. A imagem combinaria muito bem com os presídios de hoje, mas a descrição se refere aos detentos da Casa de Correção do Distrito Federal no final do século XIX. Denúncias de abuso como essas foram estampadas nas páginas do manuscrito A Justiça: journal de très mauvais augure (em português, jornal de muito mau agouro): “Há muito tempo que a 5ª galeria (...) observa que é sempre a última no conceito da recta administração”.

O quartel-general dos presos localizava-se nas celas 103 e 106, onde os “repórteres” trabalhavam sob a “chefia” do engenheiro Lício Clímaco Barboza. Os textos produzidos circularam pela 5ª galeria da Casa de Correção entre fevereiro e julho de 1894. Lá ficava o “baixo escalão” dos presidiários da Casa de Correção: operários, jornalistas, farmacêuticos, engenheiros e alunos da Escola Militar.
Naquela época, os “hóspedes” da Casa de Correção eram, na maioria, presos políticos suspeitos de terem participado das duas principais revoltas ocorridas durante o governo de Floriano Peixoto (1891-1894): a Revolta da Armada e a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, ambas em 1893.

Não era à toa que o jornal, além de tratar das más condições na Casa de Correção, tecia críticas ao governo de Floriano: “Oh, si o governo trabalhasse tanto quanto eu para fazer Justiça, não haveria tanta gente aqui”. Sem infraestrutura disponível para ter exemplares impressos, o veículo – manuscrito a nanquim em papel quadriculado todo ilustrado – tinha o logotipo invertido, insinuando que a prisão daqueles detentos havia sido um erro, uma inversão da Justiça.

As irregularidades apontadas no jornal – seis das 13 edições estão guardadas na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional – eram graves: falta de remédios na enfermaria, dieta deficiente dos detentos e as visitas ao médico só de três em três meses. Um diálogo possivelmente fictício, publicado na coluna “Estudos Sérios”, ilustrava a situação precária no presídio. Nele, o médico, Dr. Fubá, se recusa a examinar as feridas de um dos presos por medo de desmaiar. No fim da consulta, pergunta ao guarda da Casa de Correção, chamado Madeira, se haveria mais presos a serem examinados, ao que ele responde: “Temos aí alguns beribéricos [indivíduos que sofrem de beribéri, doença provocada pela carência de vitamina B], mas creio que o melhor remédio para eles é o cubículo”.

A vigilância da Casa de Detenção também não podia escapar. O jornal revelava que o guarda Madeira era um fugitivo. Ele havia sido condenado no Sul do país e, mesmo depois de escapar de cumprir uma pena de 25 anos, havia conseguido emprego na penitenciária do Distrito Federal.

Outra denúncia diz respeito ao tratamento diferenciado dispensado aos presos da 6ª e da 8ª galerias da prisão, ocupadas pela “elite” da Casa de Correção: oficiais da Armada, advogados, grandes comerciantes e políticos, como o general Inocêncio Serzedello Corrêa, ex-ministro da Fazenda do governo de Floriano, que fora suspeito de colaborar com a Revolta da Armada de 1893. Eles usufruíam de várias regalias: suas celas permaneciam abertas durante o dia, tinham acesso a bebidas alcoólicas e dispunham de serviço de barbearia e de banhos mais frequentes.

O jornal chegou a ultrapassar os muros da Casa de Correção. Uma pista é dada pelo engenheiro naval e ex-prisioneiro Atanagildo Barata Ribeiro em seu livro Sonho no cárcere: dramas da Revolução de 1893 no Brasil (1895). O autor revela que o detento posto em liberdade podia tentar levar o manuscrito ou impresso para fora do presídio amarrando-o o ao próprio corpo, sob as roupas. Neste caso, todo cuidado era pouco, já que a bagagem era revistada pelos carcereiros, e os escritos porventura encontrados eram apreendidos. A circulação de informações nas casas de detenção não era tão incomum. Pelas próprias páginas de A Justiça sabe-se que havia pelo menos dois jornais semelhantes no mesmo período: o Busca-pé e A Lei.

Barata Ribeiro, preso sob acusação de ser conivente com a Revolta de 1893 e partidário da restauração da monarquia, conta em suas memórias que o principal passatempo dos detentos era escrever. O esboço de seu livro, por exemplo, foi iniciado durante sua prisão. 

O forte caráter de denúncia do periódico fez com que ele fosse ameaçado de extinção desde seus primeiros números. Mesmo com muitas dificuldades, a publicação circulou até a 13ª edição, que apresentou a “Lista dos presos políticos que passaram pela Casa de Correção de novembro de 1893 a junho de 1894”. O último número saiu justamente numa sexta-feira 13 – em julho de 1894 –, como se fosse uma confirmação de sua “vocação agourenta” expressa no seu subtítulo. (Christianne Theodoro de Jesus/Fundação Biblioteca Nacional).


CASA DE CORREÇÃO DA CORTE

Jane Santucci* - PAISAGEM CARIOCA,



O Complexo Penitenciário Frei Caneca, implodido no último dia 13, ocupou por mais de um século e meio grande área no bairro do Catumbi, e o terreno remanescente certamente será bem aproveitado para a construção de moradias.


No contexto histórico, o conjunto presidiário formado pelos diversos pavilhões teve grande importância para a nossa memória institucional. Primeiro complexo prisional do Brasil, a antiga Casa da Correção teve sua base lançada em 1834 e inaugurada em 1850. Representou para o contexto do século XIX, um ideal de progresso e de modernidade justificado pela necessidade de corrigir as classes perigosas para proteção da sociedade - os indivíduos ociosos e também inimigos da ordem. Sua composição arquitetônica se projeta em torno do modelo panóptico de Jeremy Bentham, que serviu de base para os projetos de penitenciárias do século XIX, fundamentado no cunho da vigilância institucionalizada.

A história da Casa de Correção corre paralelamente a história do país, de seu inicio no final do Império, atravessou a velha República e o Estado Novo com muitos casos envolvendo presos célebres, como os temidos e conhecidos capoeiras perseguidos pela policia republicana, os amotinados da Revolta da Vacina em 1904 que caíram nas malhas da lei, e os presos políticos da era Vargas, ocasião em que teve entre seus prisioneiros, o escritor Graciliano Ramos, em 1936, e o memorialista Vivaldo Coaracy, em 1932.

De Coaracy temos um surpreendente e pouco conhecido depoimento que revela o dia a dia da prisão. Reeditado em 2008, o livro Sala da Capela. A Revolução Paulista de 1932, conta seus dias de prisioneiro na Capela da Casa de Correção. Escrito logo após a Revolução Paulista é narrado com tamanho rigor e precisão que nos transporta para a Sala da Capela, para aqueles dias longos e amargos que se seguiram ao repentino desfecho da Revolução. Um cotidiano de incertezas compartilhadas junto aos seus companheiros, e segundo o autor, a prisão reuniu um verdadeiro congresso representativo de São Paulo com suas múltiplas correntes - os dois partidos políticos, as classes conservadoras, militares, jornalistas, intelectuais. Permaneceram encerrados na Capela, por muitos meses antes da deportação, tanto os que haviam combatido, como os simpatizantes. Um pequeno trecho em que descreve o ambiente da Sala da Capela, da Casa de Correção:

“Na Casa da Correção existia uma Capela onde eram celebrados os serviços religiosos para os penitenciários. É uma sala oblonga, de cerca de trinta e seis metros por oito, com uma série de janelas abrindo para a” Praça 24 de Maio “(as ruas, pátios e praças da antiga Casa de Correção têm nomes tomados ao calendário das festas nacionais, e todos recordam datas comemorativas da Liberdade), e dando vista, para além da muralha, sobre a Favela do Morro de S. Carlos (…)”.

Quando a opinião pública, ao tempo do presidente Bernardes, protestou contra a prática de reunir aos sentenciados por crimes comuns aos presos políticos, foram estes transferidos para a Sala da Capela, em simulacro de separação. Da Capela foram retirados os bancos; os genuflexórios encostados às paredes, e, suprimidos os ofícios religiosos, foram colocadas ao longo da sala tantas camas de ferro, do tipo usado nos quartéis, para transformá-la em dormitório. A disposição pareceu cômoda e econômica às autoridades e, desde então, a Sala da Capela ficou transformada em presídio político.

Assim foi usada em 1930 e em 1932. Convertida em reclusão de presos sem processos, de acusados sem crime preciso, de simples suspeitos, reunidos na Sala da Capela, sob o olhar doloroso e simbólico do Crucificado.”





Ver mais:

COARACY, Vivaldo. A Sala da Capela. A revolução paulista de 1932. Rio de Janeiro: Editora Documenta Histórica, 2° edição, 2008. Prefácio de José Mindlin.

ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. Da casa de correção da corte ao Complexo Penitenciário da Frei Caneca: um breve histórico do sistema prisional no Rio de Janeiro, 1834-2006. Cidade Nova Revista, nº 1, Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2007.

*Jane Santucci é Arquiteta, pesquisadora e professora do Curso de Paisagismo da Escola de Belas Artes/UFRJ

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