terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A SOCIEDADE PAGA O PREÇO

DIÁRIO GAÚCHO 02/10/2013 | 07h37


Eduardo Torres


Facções criminosas faturam até R$ 500 mil mensais nas galerias do Central. DG revela os negócios por trás das grades. O sistema comanda, inclusive, crimes que acontecem nas ruas



Criminosos negociam as galerias do Central Foto: Ronaldo Bernardi / Agencia RBS



Entregues a facções criminosas, as galerias do Presídio Central se tornaram imóveis lucrativos. O faturamento das organizações pode chegar a R$ 500 mil mensais - livres de impostos. Comida, drogas, segurança, tudo é pago em uma galeria.

O sistema comanda, inclusive, crimes que acontecem nas ruas. As galerias podem ser classificadas entre os imóveis mais caros de Porto Alegre. Não só pelo dinheiro que geram, mas porque, ali, quem deve não tem saída: ou paga ou morre.

Com R$ 1 milhão, é possível comprar uma loja em ponto nobre na Avenida Assis Brasil, Zona Norte da Capital. Mas a facção criminosa que comanda o tráfico na Vila Maria da Conceição, no Bairro Partenon, Zona Leste, preferiu investir a quantia em um negócio livre de impostos e alimentado diariamente por pelo menos 350 "soldados" e financiadores indiretos.

Comprou os cerca de 600m² de uma das galerias (equivalente a um andar) do Presídio Central, que até então era ligada à facção Unidos pela Paz, enfraquecida. No máximo em dois anos, terá o retorno do "investimento".

A negociação, em fase de conclusão, não chega a surpreender as autoridades. Conforme levantamento da Vara de Execuções Criminais (Vec) de Porto Alegre, pelo menos dez galerias do Presídio Central atualmente são gerenciadas - em todos os seus aspectos - por facções criminosas. Juntas, estimam as autoridades, elas têm um faturamento de R$ 500 mil mensais.

Lucros de até R$ 80 mil

Imagine um grande condomínio com 4,4 mil moradores - sem qualquer benfeitoria nem custos como água e luz - e que lucra sobre a segurança, a alimentação, o uso de celulares, o tráfico de drogas entre os presos e das bocas de fumo nas ruas e até com a presença de armas dentro da cadeia.

O sistema é reproduzido nas outras cadeias do Estado. E já foi pior. No relatório da CPI do Sistema Carcerário, em 2008, havia relatos de galerias faturando R$ 80 mil por mês.

"A sociedade paga o preço"

- Esse sistema se alimenta diretamente da ignorância da sociedade. Enquanto veem as prisões como um lugar onde os criminosos devem ser jogados, não percebem, mas são vítimas e ajudam a pagar esse preço. O maior lucro das organizações criminais está na rua. Cada vez mais, os crimes da rua são decididos na prisão - avalia o juiz da Vec, Sidinei Brzuska.

São comuns as "missões" entregues ao detento quando ele sai da cadeia para custear a vida atrás das grades. Vão desde roubos de carros a homicídios de rivais ou traidores, sob a encomenda das facções. Todo o lucro vai para a caixinha desses grupos e retroalimenta o condomínio.

Um investimento seguro

Nos presídios, nenhum contrato é firmado, mas há uma "lei de mercado". As facções mais fortes ditam as regras e fazem as aquisições. Pode ser por negociação ou pela força.

A galeria negociada pela facção da Conceição fica no Pavilhão C, com mais de 300 presos. A polícia cogita que, ali, o faturamento mensal seja de R$ 40 mil. A maior parte dos lucros vem do tráfico na Zona Sul de Porto Alegre.

O beneficiário direto do negócio no C é um traficante da Restinga, preso há cinco anos, que rachou com a Unidos pela Paz e se aliou a Paulão. Com isso, continuou dando as cartas na galeria.

Suspeito de liderar o tráfico em parte do bairro e, do Central, ordenar execuções, ele deu de ombros ao ser interrogado pelos policiais.

- Tráfico? Não, não quero mais saber de ficar em boca. Estou ganhando muito mais como "plantão" de galeria. Dá para tirar uns R$ 5 mil por mês. E sem riscos - disse.

Para a polícia, com a compra da galeria, ele teria se tornado um atacadista de drogas na Restinga. Desde que foi preso, já teria inclusive comprado um apartamento na Zona Sul.
Seus "soldados" teriam sido armados pela facção da Conceição, que, em troca, fica com parte do faturamento das ruas. Um negócio que dará salvo-conduto a presos das duas regiões parceiras na cadeia - Conceição e Restinga.

"Se a gente não paga, sabe o que acontece"


A dona de casa de 54 anos já não tem certeza para quais parentes está devendo dinheiro. Desde que o filho foi preso em Porto Alegre por roubo de veículo e caiu pela primeira vez no Presídio Central, além dos R$ 2,5 mil do advogado, em quatro meses ela gastou em torno de R$ 2 mil para entregar mantimentos na cadeia.

Ela os entrega diretamente ao filho em cada visita, mas sabe que nem tudo vai parar com ele. É a facção que gerencia as compras. Parte delas vai parar - devidamente sobretaxada - na prateleira da cantina mantida pelos presos na galeria onde o filho está alojado.

- Se a gente não paga, sabe o que acontece. Ou arrebentam eles lá dentro, ou mandam fazer alguma coisa ruim aqui fora - diz, assustada.

"Prefeitura" fica com tudo

Os presos primários são o principal combustível da organização. O filho está preso entre outros 22 em uma cela - e dormindo no espaço que deveria servir de cozinha. Quando sair, não poderá levar sequer o colchão dado pela mãe. Sairá só com a roupa do corpo. O resto, fica com a "prefeitura" da galeria, administrada por uma facção. Até o mês passado, mais de 40% dos detentos do Presídio Central estavam na cadeia pela primeira vez.

- Hoje, o Central já não recebe presos condenados. Se diminui a presença de lideranças experientes das facções, aumenta o alimento desse sistema perverso, com consequências piores nas ruas. O preso primário cai lá dentro sem opção. Ou é de facção, ou é empurrado para uma - diz o juiz da Vara de Execuções Criminais (Vec), Sidinei Brzuska.

Quem paga são seus familiares. Extorquida desde a prisão do filho, para lhe garantir a integridade física, a dona de casa representa o elo mais fraco - e fundamental -na engrenagem. Ela sabe disso e luta para evitar destino ainda pior para o filho. Neste mês, ele deve ser transferido para o regime semiaberto em Charqueadas. Ela prefere Porto Alegre.

- Lá, a gente sabe que tudo isso é muito mais organizado. Quem entra lá, volta sempre pior - lamenta.

A transação

1) Um traficante da facção Unidos pela Paz, atualmente em liberdade, arrecadava os "lucros" de duas galerias do Pavilhão C. O dinheiro vinha dos negócios nas galerias (cantina, venda de drogas, segurança etc) e do tráfico da Zona Sul.

2) O "plantão" de uma das galerias, também traficante, rachou com a facção. Deixou de prestar contas e passou a ficar com a grana.

3) Como a facção estava enfraquecida, não houve represália. O "plantão" também tem seus comparsas na cadeia e é violento.

4) Com os episódios da guerra do tráfico na Vila Maria da Conceição, Paulão queria reforçar as alianças na Restinga e entrou em negociação com o "plantão" para assumir o domínio da galeria. O negócio é estimado por autoridades de segurança em R$ 1 milhão.

5) Como se dá o "pagamento": Paulão ajuda o "plantão" a aumentar seu poder no tráfico fora da cadeia. Fornece drogas, armas e soldados. O "plantão" deixa de ser varejista para se tornar distribuidor na região. Aumenta sua influência e seus lucros. Em troca, repassa os "rendimentos" da galeria e dos crimes na sua região para a facção.

Plantão: é quem manda da galeria, o "prefeito". Ele é designado pela facção e reconhecido pela direção do presídio. É o porta-voz. Muitas vezes, é o testa de ferro. É ele que abraça as "broncas", é transferido ou punido em casos de transgressões graves do "acordo" com a direção.

Os custos de uma galeria

Compra - A facção não adquire uma galeria exatamente da mesma forma que um imóvel comum. Assemelha-se mais a um investimento. Quem compra a galeria, passa a ser o fornecedor exclusivo de droga para ela e retira disso o seu principal lucro. Por consequência, passa a ser quem, de fato, comanda os passos dos presos que estão na galeria.

Corrupção - A entrada de drogas, armas ou celulares na cadeia está estreitamente ligada à corrupção de agentes públicos. Do ponto de vista da facção, este é o maior percentual dos seus custos. Neste ano, por exemplo, um PM foi preso com uma carga de drogas escondida em seu armário, no Presídio Central. A investigação apontou que ele receberia R$ 18 mil pelo serviço.

Serviços - Quando um detento se torna integrante da facção, ele pode ser beneficiado com serviços jurídicos, apoio à família e até serviços médicos. Tudo dependerá da sua posição na organização.

A engrenagem das facções

A entrada: quando ingressa no Presídio Central, o preso escolhe onde vai ficar. Significa que ficará no condomínio de uma facção. Se não era ligado a nenhum grupo antes de ser preso, geralmente é colocado na galeria onde estão detentos da sua mesma região.

Dinheiro - A entrada de dinheiro no Presídio Central é limitada. Não passa de R$ 30 por preso a cada mês. Quando o preso precisa desse envio, o familiar tem que entregar o valor ao "trem" (pessoa indicada para entrar com a grana). Parte fica com o plantão da galeria.

Comida - A Susepe recebe aluguel para manter um mercado, com preços tabelados, no Central. Mas quem compra são as facções, que têm suas próprias cantinas. É ali que o preso compra, a um preço sobretaxado. As cantinas são a única forma do preso ter uma escova de dentes ou um aparelho de barbear, por exemplo. As compras levadas pelas famílias também passam pelo plantão da galeria.

Tráfico - A venda de drogas em uma galeria é centralizada pelo plantão e suas gerências. Obrigar familiares a entrarem com drogas faz parte do aluguel do preso.

- Nas bocas internas, o preço da droga é sobretaxado. O pagamento, em geral, é exigido com o envio de dinheiro - ou depósito em contas de laranjas - por familiares do usuário. O tráfico é responsável pela maior parcela do "caderninho" que torna o ex-detento um devedor quando volta às ruas.

- A maior parcela do lucro, porém, está nas bocas da rua. Para ser aceito em uma galeria que não seja dominada por cúmplices dele, o detento entrega o seu ponto à facção. A organização manda "soldados" para garantir o domínio. Uma parte do ganho vai para a "caixinha" do grupo.

Dívidas - A saída de presos com dívidas é lucro na rua para as facções. Daí surgem as "missões", que podem ser desde roubos até a execução de rivais ou outros devedores. Na prática, o devedor faz girar dinheiro na organização.

Faturamento - O maior volume de dinheiro de uma facção não circula dentro da prisão. Ali, é feito o gerenciamento de cada peça do sistema, que, só no Presídio Central, chega a render R$ 500 mil por mês.

Salvo-conduto - São cada vez mais comuns as "alianças". Ser aliado de uma facção significa, para o traficante, salvo-conduto quando cair preso. Para isso, a facção torna-se sua fornecedora exclusiva de drogas. E ele destina parte do lucro para garantir a sua posição de privilégio em uma galeria.

Estadia - O "conforto" do apenado está ligado ao papel dele na organização. Se é um matador, recebe tratamento vip. Se é traficante associado à facção, entra em posição de gerência. O Estado não fornece colchão ou utensílios de higiene ao preso. Tudo o que ele recebe da família, quando sair, ficará para a facção.

Celular - Em geral, os celulares são controlados pelas facções. O uso é cobrado. Quem guarda os aparelhos recebe por esse serviço. Ele arcará com as consequências de uma apreensão.

O mapa das facções do Central

Manos:

- Galerias 2 e 3 do Pavilhão B

Abertos:

- Galerias 1 do Pavilhão B e 2 do Pavilhão D

Unidos pela Paz:

- Galerias 1 e 2 do Pavilhão C

Farrapos e Zona Norte:

- Galerias 1 e 3 do Pavilhão D

Bala na Cara:

- Galeria 3 do Pavilhão F

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