domingo, 25 de agosto de 2013

UMA PRISÃO SEM GUARDAS

ZERO HORA 25 de agosto de 2013 | N° 17533

MODELO ALTERNATIVO


O Rio Grande do Sul deve ter até 2014 seu primeiro presídio sem vigias. Será em Canoas, onde já conta até com terreno escolhido. No lugar dos guardas, os próprios presos se encarregarão de controlar seus companheiros de cela e mantê-los dentro da disciplina. E qual a punição para quem transgride? Simples: é enviado a uma penitenciária comum, com policiais fazendo a vigilância externa, sem garantia de trabalho ou estudo.

Por mais desconfianças que desperte, a iniciativa cresce onde foi implantada. É o caso de Minas Gerais, onde foram inauguradas 33 prisões deste tipo, conhecidas como Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) – o mesmo nome que terão esses presídios no Rio Grande do Sul. O governo mineiro já projeta outras 69 prisões, tal o impacto positivo alcançado.

– Na Apac são proibidas drogas, bebida alcoólica e uso de celulares. O sujeito é também obrigado a trabalhar. É para mudar de vida, mesmo – resume o advogado Valdeci Ferreira, responsável pela Fraternidade Brasil, ONG que organiza as Apacs em Minas Gerais.

Parece bom para o preso, mas será bom para a comunidade, sempre atemorizada com a possibilidade de motins ou fugas de presidiários? Uma estatística tem ajudado a tranquilizar a população mineira. Conforme estudo feito pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a reincidência entre os egressos das unidades Apac girou em torno de 15%.

O juiz gaúcho Sidinei Brzuska, responsável pela fiscalização dos presídios da Grande Porto Alegre, um dos maiores conhecedores do sistema penitenciário brasileiro e defensor das Apacs, tem uma hipótese para as fugas escassas:

– Se o sujeito foge, vai para um presídio comum. E todos sabemos as condições miseráveis e insalubres que caracterizam as penitenciárias brasileiras.

Testadas só em cidades pequenas

Existem ainda, segundo os propagadores do modelo, vantagens financeiras. As dezenas de unidades Apac, que são mantidas por convênio com o Estado de Minas Gerais, custam aos cofres mineiros um terço do valor que seria despendido para manutenção do preso no sistema comum. O custo de cada preso para o Estado corresponde a quatro salários mínimos, enquanto na Apac é de um salário e meio, estima o advogado Ferreira.

No Legislativo gaúcho, o deputado Jeferson Fernandes (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos, tem organizado excursões de autoridades a Minas Gerais, para conhecer a “prisão sem grades”.

– É a ressocialização efetiva, sempre pregada e nunca exercida no Brasil – pondera o parlamentar.

Uma ressalva é necessária fazer: quase todas foram implantadas em pequenas cidades, onde não existem grandes facções do crime organizado. Outra ponderação necessária: em Minas, onde o sistema ganhou impulso, apenas 2,3 mil presos são contemplados pelo modelo. Isso representa menos de 5% dos 56 mil apenados daquele Estado. Funcionará em grande escala? A necessidade de se testar o modelo Apac é um raro consenso. Entre os que se tornaram defensores da proposta estão, inclusive, adeptos de mais rigor na aplicação da lei, como promotores e policiais.

Em Canoas, após momentos de estranhamento, o clima é de expectativa.

– No começo, fiquei bem preocupada. Afinal, se tem duas coisas que ninguém quer por perto é cemitério e presídio. Mas agora estou conformada. Essa Apac parece uma boa alternativa para esses sujeitos voltarem a viver em sociedade – comenta a dona de casa Tânia Cunha, que é líder comunitária no bairro Guajuviras, onde será instalada a Apac.

Mórmon, Tânia acredita em arrependimento e reconstrução. Ela diz que frequenta desde 2009 reuniões sobre a construção de presídios, e o bairro já se conforma com a ideia.

Secretário da Segurança Pública de Canoas, o delegado da Polícia Civil Guilherme Pacífico é um dos entusistas da ideia. No local já escolhido estão sendo construídos uma Praça da Juventude (com local para esporte, lazer e biblioteca), escola e posto de saúde. A cerca de dois quilômetros dali também já começou a construção de um presídio comum, para 434 apenados.

– Tenho convicção de que a Apac será um sucesso – opina Pacífico.

Resta saber se a prisão sem grades, confinada a municípios de pequeno porte, funcionará em uma das maiores cidades do Rio Grande do Sul.

humberto.trezzi@zerohora.com.br

HUMBERTO TREZZI

RESSOCIALIZAÇÃO

Veja a diferença entre cárceres com celas fechadas e vigiados por agentes penitenciários e cadeias administradas pelos próprios detentos

APAC

- A Apac se destina a presos condenados, que podem estar cumprindo pena nos três regimes: fechado (atrás de grades), semiaberto (com trabalho e pernoite em albergue) e aberto (com trabalho fora). Todos convivem no mesmo prédio, e não há superlotação.

- Não existem muros externos, vigilância eletrônica nem guardas. A relação é de confiança entre os apenados, que temem perder a vaga. Cada preso convence o colega a não fugir.

- A disciplina é rígida. Os presos têm atividades das 7h às 21h. Isso inclui arrumar as camas e limpar a cela. É proibido telefone.

- São obrigatórios o estudo e o trabalho. Médicos, psicólogos, assistentes sociais, professores, parte deles vinculados ao Estado, e outros voluntários trabalham dentro do presídio.

- Um voluntário, escolhido por um conselho comunitário, é designado para dirigir o presídio. A prisão conta com cerca de oito funcionários para serviços administrativos, pagos pelo Estado, que também banca despesas de água, luz e telefone.

- Parte dos presos trabalha como plantonista, ficando com as chaves de salas internas da porta que dá acesso à rua. Quebras de confiança são punidas com transferências.

PENITENCIÁRIA COMUM

- Os que cumprem pena no regime fechado ficam num prédio, em celas, apartados dos presos de outros regimes, que ficam em albergues.

- As celas do regime fechado são superlotadas. A maior parte dos presos ali colocados, do regime fechado, não trabalha. A atividade é opcional e também o estudo, a que poucos se dedicam durante cumprimento da pena.

- As alas das penitenciárias tradicionais são comandadas por facções criminosas (as mais comuns no Estado são os Manos e os Bala na Cara). A rivalidade faz com que muitas vezes elas digladiem pelo controle de algum setor, ocasionando mortes.

- Celular, drogas e álcool são comuns dentro dos presídios, mesmo proibidos. Há casos em que até prostitutas ingressam na prisão. Presidiários comandam de dentro do presídio, via telefone, assassinatos, sequestros e assaltos fora da prisão.

- Os presos não são obrigados a arrumar ou limpar as celas, com exceção de quando acontecem casos de rebelião.

- Existem três níveis de vigilância: a externa (feita por PMs), a interna (feita por agentes penitenciários) e a eletrônica, com uso de câmeras de vídeo. Muitas prisões têm ainda detectores de metal e portas de aço bloqueando alas compartimentadas.


Ex-preso criou iniciativa semelhante no Estado

Um preso, Lacir Ramos, foi responsável por fundar, no Rio Grande do Sul, um modelo prisional que em tudo se parece com o implantado pelas Apac. Não por acaso, ele hoje peregrina pelo Estado defendendo a adoção de um método semelhante de recuperação dos apenados.

Lacir passou a maior parte de seus 54 anos de vida atrás das grades. Entre diferentes passagens, foram 29 anos e seis meses trancafiado, algo difícil de ser encontrado.

– Não que eu fosse santo – admite ele, hoje pastor evangélico.

Filho de família de agricultores pobres, Lacir cometeu o primeiro furto ainda adolescente, em Cruz Alta. Foi torturado por policiais e viu crescer o ódio dentro de si. Em 1978, soldado do Exército, assaltou e surrou um PM. Foi preso. A primeira temporada de prisão foi de seis anos. Aí, a cada soltura, assaltava de novo. Dentro da prisão, ficou abrigado na facção liderada pelo famoso assaltante Dilonei Melara. No curso da vida bandida, Lacir matou algumas pessoas. Fugiu para São Paulo e Rio, foi recapturado diversas vezes pela Polícia Civil gaúcha.

Foi numa das temporadas em São Paulo que virou religioso, graças à mulher, a mesma com quem está casado há quase três décadas. Condenado a mais de 200 anos de reclusão, cumpriu quase três décadas de cadeia, o máximo permitido pela legislação brasileira. Passou 18 anos na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) e foi lá que, já religioso, virou pastor evangélico e decidiu implantar linha dura na ala que comandava.

Convenceu colegas de infortúnio que a reforma começa no comportamento. Proibiu drogas, bebida e badernas – e foi atendido. A linha adotada persiste na galeria que comandava.

Libertado, Lacir teve dificuldades para arranjar emprego. Desmaiou de tanto fazer força no primeiro serviço, de pedreiro. Hoje trabalha para um deputado e como missionário, fazendo pastoral carcerária e a defesa do método da Apac, inclusive guiando visitantes do projeto em Minas. No Presídio Central, na manhã de sexta-feira, foi saudado pelos presos desde as janelas.

– A Apac é a humanização. A prova de que reformar o ser humano é possível – conclui o pastor Lacir.



COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Muito bonito no papel. Se, no lugar dos guardas, "os próprios presos se encarregarão de controlar seus companheiros de cela e mantê-los dentro da disciplina", quem denunciará as transgressões para a devida punição e retorno do "indisciplinado" à uma penitenciária comum? Quem tiver o peito de denunciar um colega apenado, com certeza receberá a pecha de traidor e terá a sua vida na prisão e a dos seus familiares em risco? É através de ideias falaciosas e políticas permissivas e ingênuas que a impunidade vem ganhando força e estimulando os criminosos a cometerem mais crimes e com requintes de ousadia e crueldade.

Mas esta ideia não pode ser totalmente descartada e pode ser aplicada em pequenas unidades, desde que haja uma administração do Estado, convênios com empresas locais, capacitação técnica, assistência permanente e monitoramento constante através de agentes do judiciário. Caso contrário será semelhante às unidades e albergues onde são colocados presos do regime semiaberto e aberto, onde as portas estão abertas ao crime.

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