segunda-feira, 12 de agosto de 2013

FARRA NO REGIME FECHADO


ZERO HORA 12 de agosto de 2013 | N° 17520

ADRIANO DUARTE | CAXIAS DO SUL

Presos com livre acesso às ruas

Condenados por tráfico e homicídios são flagrados circulando fora de penitenciária de Caxias sem escolta e autorização judicial



Presos do regime fechado que jamais poderiam deixar a Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (Pics) sem escolta têm livre acesso à rua. Condenados por tráfico de drogas e homicídios vão ao mercado, passeiam, resolvem assuntos pessoais longe do presídio ou prestam favores externos para outros detentos ou agentes da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe).

Tal liberdade é vedada pela Lei de Execução Penal (LEP). Mas apenados ignoram a determinação em plena luz do dia, supostamente com a conivência de servidores públicos.

Durante 10 dias, o jornal Pioneiro acompanhou a movimentação de cinco apenados. Esses homens foram condenados a penas que variam de nove a 27 anos de prisão. Em tese, deveriam ficar dentro dos limites do presídio porque nenhum deles progrediu para o semiaberto, o que daria direito a saídas justificadas.

Mas não é o que acontece com os detentos flagrados pela reportagem. Apesar de cumprirem as penas no regime fechado, eles deixam a penitenciária a qualquer hora do dia sem vigilância, o que não é permitido. Em nenhum momento, porém, são interceptados por agentes. A regalia ocorre há meses. Tanto a Vara de Execuções Criminais (VEC) quanto o Ministério Público desconhecem o privilégio.

Falta de vigilância facilita fugas e prática de crimes

A vantagem concedida para esses presos não é por acaso. Eles integram uma equipe responsável pela manutenção e por pequenos reparos. A atividade está prevista na lei, mas com restrições. Os serviços, por exemplo, devem ser executados dentro do estabelecimento prisional ou, se for o caso, no lado externo com a escolta de agentes da Susepe.

Caso contrário, a ausência de vigilância poderia ser estímulo para fugas ou a práticas de outros crimes. Os detentos também diminuem um dia da pena para cada três dias trabalhados, o que está previsto na legislação.

Na ficha dos homens flagrados pela reportagem, porém, não consta nenhuma ordem judicial que autorize as saídas além do presídio. De acordo com informações da VEC, apenas dois têm permissão para executar a manutenção externa do prédio, mas dentro do perímetro da penitenciária.

Essa autorização prevê circulação restrita em um pátio murado onde ficam os contêineres de lixo, às margens da BR-116, e a um depósito de ferramentas, a poucos metros do portão principal. Contudo, a reportagem viu pelo menos três detentos longe da cadeia, circulando pela BR-116 e ruas próximas.

A equipe de presos foi criada há pouco mais de dois anos, desde que a Pics deixou de abrigar detentos do semiaberto. Sem essa mão de obra, não haveria como recolher o lixo produzido pelos quase 600 detentos ou transportar a matéria-prima usada no trabalho interno. Mas, em boa parte do tempo, o grupo é usado como pretexto para que apenados passem de oito a 10 horas longe das celas. É quase como um prêmio. A possibilidade é cobiçada por conta de três luxos que contrariam a lei:

A escolha dos integrantes da equipe de manutenção cabe à direção da Pics. O primeiro requisito é ter bom comportamento. Seriam, portanto, homens de confiança da administração da casa. Mas a Susepe parece ignorar o que eles fazem quando estão além dos muros em contato com outras pessoas na rua.

Saídas para compras no mercado

Os detentos da equipe de manutenção cumprem a pena em uma cela separada dos demais. Deixam a prisão por volta das 7h e retornam no final da tarde. Nada os impede de circular por uma rua lateral à penitenciária, pela BR-116 e em locais ignorados até pela direção da cadeia. Eles vão ao mercado para adquirir produtos de higiene, cigarros e outros itens para presos impedidos de sair. O favor é estendido para alguns agentes da Susepe.

Parte do grupo trabalha de fato. Outros, porém, permanecem sem ocupação no espaço reservado para a equipe, no lado de fora. Nessas horas, vale passar o tempo tomando chimarrão ou apenas conversando. Somadas às saídas para a rua, essas regalias em nada lembram que se trata de homens cumprindo penas por crimes como tráfico de drogas e assassinatos.

Aos sábados e às quartas, a penitenciária abre as portas para presos receberem a visita de familiares. Para a maioria deles, o contato só pode acontecer atrás dos muros, um padrão do sistema prisional gaúcho.

Mas não foi o que aconteceu com a equipe de manutenção na manhã de 24 de julho, uma quarta-feira. O grupo parou parte das atividades para se encontrar com amigos e parentes no lado de fora. Alguns presos sorviam chimarrão acompanhados de uma mulher e de um homem no espaço onde são guardadas as ferramentas de trabalho.

Na tarde de 30 de julho, João Pedro Rodrigues Cabral, condenado a 27 anos por dois homicídios e uma tentativa de homicídio, circulava em frente à Pics. Ele e outro detento permaneceram 20 minutos varrendo um pequeno pátio às margens da BR-116. Após, Cabral foi a um bar na rodovia. Por volta das 15h, ele deixou a cadeia pela BR-116, entrou na Rua Irma Zago e tomou rumo ignorado. Só retornou 20 minutos depois.

Por volta das 16h20min de 2 de agosto, Ícaro Fernando Carpeggiani, condenado a nove anos por tráfico de drogas e porte de armas, conversou com um agente no portão da penitenciária. Em seguida, saiu a pé pela BR, atravessou duas ruas e seguiu em direção a um mercado. Vinte minutos mais tarde, Pedro Ademir Noronha, que cumpre pena de 16 anos por tráfico, caminhava pela BR-116. Ele entrou em uma padaria, a três quadras do presídio. Pouco depois, saiu com uma sacola e voltou ao presídio.

Em nenhum momento, os três tiveram a escolta de agentes.

Diretor desconhece as regalias

O administrador da Pics, Antonio Varlei de Oliveira Severo, afirma desconhecer que presos do regime fechado circulem na rua. Admite, porém, que um ou outro detento deixou a cadeia para comprar no comércio itens para a manutenção:

– Mas essa saída é esporádica. Só saem presos da manutenção que autorizo para ir a um lugar definido.

O diretor promete averiguar quem abusou do benefício.

– Para mim, é uma novidade. Vou apurar – afirma.

Severo defende a existência da equipe. Segundo ele, são presos que trabalham diariamente em uma série de atividades, o que inclui serviços de limpeza, descarregamento de caminhões, manutenção elétrica e outros afazeres. A escolha dos integrantes inclui avaliação do comportamento, tipo de pena, entrevista com psicólogos e assistentes sociais.

– Como se faz um apenado para não recair no sistema penal: tem de confiar. Quase 75% dos presos retornam porque a sociedade não dá oportunidade. Eu oportunizo para que eles se ressocializem da maneira mais prática. Sem o apoio desse grupo, a Pics paralisa – diz ele.

O diretor da cadeia enfatiza que os apenados podem receber visitas no lado externo porque é um benefício concedido à equipe.


COMO DEVE SER

1) O acesso à rua é liberado na maior parte do dia.

2) Não há supervisão direta de agentes penitenciários.

3) Os presos recebem visitas no lado de fora da cadeia.

O que está previsto na lei - Todo detento do regime fechado só pode sair da cadeia para ir ao médico, participar de audiências ou mediante autorização da Justiça, regra válida também para presos provisórios (sem condenação). Qualquer preso provisório ou do regime fechado deve ser escoltado por agentes penitenciários ou policiais quando estiver na rua. O preso do regime fechado pode trabalhar fora ou dentro da cadeia. Mas a lei prevê a atividade externa somente em serviço ou obras públicas desde que adotadas cautelas contra a fuga e em favor da disciplina. Equipes de manutenção podem executar serviços externos, mas nos limites do presídio. Para ter direito ao trabalho externo sem escoltas, o apenado precisa progredir para o regime semiaberto.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - É outro retrato do Brasil Surreal onde as farras são rotinas na justiça criminal brasileira assistemática, apesar da existência de pesos e contrapesos, alguns regiamente custeados pelo povo brasileiro, e que nunca funcionam devido aos altos níveis de descontrole, condescendência, permissividade e baixo investimento existentes.

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