quinta-feira, 8 de agosto de 2013

OCIOSIDADE NO SISTEMA PRISIONAL


Apenas 22% dos presos do sistema penitenciário brasileiro trabalham. Índice permanece estagnado há quase uma década. A cada dia trabalhado, o preso ganha um dia a menos de pena

JULIANA CASTRO
O GLOBO
Atualizado:16/03/13 - 20h45

Em Santa Catarina, presa trabalha com costura em empresa anexa ao presídio feminino de Florianópolis Sabryna Sartott


RIO — Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha, tem 49 anos, quase metade deles vividos atrás das grades. É tanto tempo que os dedos de uma mão não são suficientes para contar o número de presídios pelos quais ele, ex-chefe do tráfico no Morro da Mangueira, na Zona Norte do Rio, peregrinou. Da primeira vez, foram 17 anos e meio preso. “Direto e sem sair na rua”, como ressalta. Saiu em 2006, ficou solto um ano e sete meses, até voltar para a cadeia por associação ao tráfico.

Tuchinha gravou na memória a data em que deixou para trás os muros da penitenciária disposto a nunca mais voltar ao submundo que o fez entrar lá. O dia 5 de agosto de 2008 é uma espécie de aniversário, quando ele nasceu novamente para a liberdade. Hoje, vive com uma tornozeleira eletrônica. Trabalha no Afroreggae tirando jovens da criminalidade, na qual já fez muitos entrarem. Ele explica a diferença entre a primeira vez que deixou a cadeia e voltou ao crime, e a segunda, em que abdicou das armas:

— Quando saí em 2006, não tive oportunidade nenhuma, por isso fui preso novamente. Se eu tivesse tido em 2006 a oportunidade que tive em 2008, não teria voltado para a prisão.

Essa ausência de oportunidade a que Tuchinha se refere tem escala em um problema anterior: a falta de projetos de ressocialização. Apenas 22% dos presos no sistema penitenciário brasileiro exercem algum tipo de atividade laboral, interna ou externa aos presídios. É um problema em que o país não avança, já que o índice permanece estagnado há quase uma década, período até o qual o Ministério da Justiça tem dados. Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), de junho de 2012 e divulgados no fim do ano, mostram que a parcela que se dedica ao estudo é ainda menor: apenas um a cada dez detentos tem aulas.

Além de ser remunerado, o preso tem um dia a menos de pena, a cada três dias trabalhados. No caso do estudo, o condenado tem um dia de pena a menos a cada 12 horas de frequência escolar divididas, no mínimo, em três dias.

Especialistas são unânimes em dizer que o índice sobre trabalho na prisão é ínfimo e que o número revela uma realidade ainda mais dura. Boa parte dos presos incluídos nesta estatística desenvolve atividades que não trazem qualificação ou contribuem para a reinserção no mercado de trabalho.

atividades de baixa empregabilidade

Sem formas de sustentar, a probabilidade de reincidir é grande, ainda que esse não seja o único motivo que contribui para o retorno à criminalidade. Ao oferecer oportunidades de trabalho dentro dos presídios, os estados deveriam pensar nas profissões mais demandadas no mercado e aquelas em que os egressos sofreriam menos preconceito, como aquelas em que não há contato direto com o público.

— Os poucos estabelecimentos prisionais que têm esquemas de trabalho operam com atividades que não estão bombando em oportunidade de emprego. Se você colocar o preso para costurar bolas de futebol, por exemplo, ele sai com pouca sabedoria para participar da sociedade de conhecimento — diz o sociólogo José Pastore, autor do livro “Trabalho para ex-infratores”.

É justamente a preocupação de formar profissionais demandados pelo mercado que move a Malharia Social, que atende a detentas do presídio feminino em Florianópolis, em Santa Catarina.

— Elas passam por todos os processos de produção das camisetas e também a criação e a customização. É importante essa formação, porque é um campo que sempre precisa de mão de obra — diz a professora de costura e estudante de moda Queila de Souza.

Com problemas de saúde, Graziela Zandonai, de 26 anos, começou com o marido a vender cocaína para comprar os medicamentos. Presa, está aprendendo um ofício e voltou a sonhar:

— Devo sair em maio de 2014. Quero ter a minha própria oficina de costura.

Assim como Graziela, 91.759 presos trabalham dentro dos presídios num universo de 508 mil do sistema penitenciário. Outros 20.279 estão em atividade fora das unidades prisionais.

Ex-secretária nacional de Justiça e professora da Unirio, Elizabeth Süssekind conta que a descrença do Estado na recuperação do infrator e a necessidade de encontrar espaço para encaixar mais detentos no sistema fizeram com que ambientes antes usados para atividades laborais fossem transformados em celas improvisadas. Ainda de acordo com ela, as plantas de presídios antigos previam espaços que contribuíam para a ressocialização, ao contrário dos atuais:

— Se a gente identificar ressocialização com trabalho e estudo, que são as ferramentas para a reinserção junto com o contato com a família, os estabelecimentos hoje não contêm isso. Eles sempre têm que ter algum equipamento local para trabalho, mas é tão restrito, pequeno e desequipado que você já vê que não vai servir para aquele fim.

As poucas vagas que têm para trabalhar são disputadas pelos detentos, como relata José Cláudio Piuma, o Gaúcho, ex-chefe de uma facção criminosa do Rio, que passou 28 anos preso em regime fechado, entre idas e vindas.

— Você tem numa unidade mil presos e só tem trabalho para cem. Às vezes, é um trabalho que só te ajuda ali dentro, do lado de fora não te ajuda muito — diz ele, que hoje cumpre regime semiaberto e cursa a 8ª série do ensino fundamental.

A falta de qualificação é agravada com o preconceito que o ex-preso sofre no mercado de trabalho. Alguns estados até sancionaram leis em que obrigam empresas que prestam serviços ao governo a contratar egressos do sistema prisional. No Rio, a reserva de vagas chega a 5%. Instituições como o Afroreggae e a Fundação Santa Cabrini, que trabalham no acolhimento de ex-presidiários, começam a montar seus bancos de dados para indicar essa mão de obra.

O Ministério da Justiça informou que foram destinados à reintegração social, em recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), R$ 4,5 milhões no ano passado. A pasta tem feito parcerias com outros ministérios para que as ações de ressocialização não fiquem restritas às verbas do Funpen.

Enquanto isso, quem conseguiu se reinserir no mercado de trabalho conta como um emprego muda a vida:

— Fico feliz com pequenas coisas que para a maioria é uma besteira, mas que para mim, aos 44 anos, é muito. É um mundo eu ter um cartão de crédito. E ter CPF, então? — diz Roseli dos Santos Costa, ex-traficante que cumpre regime semiaberto e trabalha como recepcionista.

Luiz Carlos Oliveira da Costa, de 47 anos, entrou para o crime na Favela do Jacarezinho, na Zona Norte. Diz ter a sorte de não ter sido preso, só levado para averiguação. Hoje, convive com ex-detentos e fala sobre sua história:

— É uma vida que eu não quero mais e não desejo para os meus inimigos.


Rio é estado do país onde presidiários menos trabalham. Só dois a cada cem detentos exercem atividades dentro ou fora da cadeia

JULIANA CASTRO 
O GLOBO
Publicado:16/03/13 - 20h00


RIO, FLORIANÓPOLIS e PALMAS — Somente dois a cada cem presos do do Rio trabalham, dentro ou fora da unidade prisional. São apenas 676 exercendo atividades laborais num universo de 31.642. Levantamento feito pelo GLOBO com base em números do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de junho de 2012 e divulgados no fim do ano passado mostra que este é o pior índice entre todos os estados brasileiros.

O GLOBO conversou com presos e a reclamação era uníssona: faltam oportunidades de trabalho nos presídios e, quando elas existem, não ajudam a ganhar experiência para um emprego fora dos muros da penitenciária.

As poucas ofertas de trabalho no sistema penitenciário fluminense foram destacadas no relatório de 2012 do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura.

No Rio, a responsabilidade pelo trabalho e estudo dos presos fica a cargo da Fundação Santa Cabrini, vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária. O presidente do órgão, Jaime Melo de Sá, contestou os dados do Depen, que, segundo ele, ignoram uma parcela de 1.568 detentos que trabalham na faxina dentro do sistema prisional, com os quais o estado gasta R$ 5 milhões por ano em salário. Isso elevaria o índice do Rio para 7% dos presos trabalhando.

— Faltam recursos para profissionalizá-los, para qualificá-los? Lógico que falta, como falta aqui fora. Mas dentro do sistema é pior porque entre você colocar (recursos) aqui fora ou no sistema, provavelmente, por uma decisão política, a escolha é por menos dentro do sistema — disse Jaime, prometendo que, até o fim deste ano, 10% dos presos do estado estarão trabalhando.

SC tem melhor índice no país

No extremo oposto do Rio está Santa Catarina, onde 43% dos presos no sistema penitenciário trabalham. Lá, existem experiências como a Estampa Livre, da Pastoral Carcerária, no presídio de Florianópolis, que ajudam a deixar o estado com o melhor índice.

— Nos orgulha bastante dizer que dos 120 apenados que passaram por aqui, em sete anos do projeto, apenas um voltou a cometer crime — enfatiza o coordenador da Estampa, Newton de Almeida, que foi aluno da oficina no período em que cumpria pena de pouco mais de três anos por tráfico internacional.

No presídio masculino, a Estampa Livre tem uma sala adaptada, com os equipamentos, onde trabalha Maikon Zulmar Vieira, de 30 anos, e outros presos. Há sete anos, ele deixou para trás a mulher grávida e a liberdade:

— Achava que ter horário para trabalhar era chato. Mas vi que não tem problema acordar às 7h e trabalhar durante oito horas. Aprender serigrafia me deu confiança de saber que posso — disse Maikon, condenado a pena de 20 anos por assalto e homicídio.

Samuel Gonçalves tem 48 anos e já contabiliza 26 deles no cárcere, entre idas e vindas, por tráfico de drogas. Sem família, sem uma profissão certa, sem casa e com sete filhos (desconhece o paradeiro de seis deles), está a um ano e dois meses de deixar a unidade:

— Gostei de aprender a costurar. É muito mais leve do que dobrar ferros, que era o que fazia antes. Acho que terei mais chances nas confecções

Já no ranking com o percentual de presos que estudam, Tocantins aparece na pior colocação. É a unidade da federação em que, proporcionalmente, menos pessoas do sistema penitenciário exercem atividades educacionais: apenas 1,7%. São apenas 36 presos estudando, num universo de 2.114 pessoas.

A Secretaria de Justiça e Cidadania, responsável pelos presídios no estado, afirmou que os dados estão errados e enviou um ofício ao Depen em outubro de 2012 para pedir a correção dos dados.

— A resposta foi que em janeiro de 2013 a correção seria feita. São 2.445 presos no sistema e 190 alunos da alfabetização ao ensino superior. Temos um preso do regime semiaberto na faculdade de odontologia — disse o superintendente do Sistema Penitenciário Prisional no estado, Walderi Francisco de Oliveira.

Ainda que o cálculo fosse feito com os dados da secretaria, menos de 10% dos presos do estado estariam estudando. Para o superintendente, os dados no Tocantins foram prejudicados por outro fator: o único presídio de segurança máxima do estado, o Barra da Grota, em Araguaína, a 400 quilômetros da capital, foi destruído após uma rebelião em 2011 e estava em reforma em 2012. A unidade prisional conta com sala de aula com capacidade de atender 216 presos.

Segundo a Secretaria de Justiça, sete cidades têm presos em sala de aula, mas, de acordo com a Corregedoria de Justiça, em apenas dois presídios existem espaços para presos de regime fechado estudarem.

— Onde tem estrutura não tem gente para fazer a segurança. Faltam agentes penitenciários, afinal de contas, para levar o preso para a sala de aula, existe uma logística que os presídios, na maioria das vezes, não tem — explicou a juíza auxiliar da Corregedoria, Flávia Afini Bovo.

Em posição oposta ao Tocantins, Pernambuco é o estado em que, percentualmente, mais presidiários estão em atividade educacional: 25% dos 27.193 no sistema penitenciário estudam. A maioria (5.401) cursa o ensino fundamental. Outros 850 estão na alfabetização e 509, no ensino médio. Nenhum cursa ensino superior ou técnico.

(Colaboraram Juraci Perboni e Graziela Guardiola)

Nenhum comentário: