A Execução Penal é um dos extremos do Sistema de Justiça Criminal, importante na quebra do ciclo vicioso do crime pela reeducação, ressocialização e reinclusão. Entretanto, há descaso, amadorismo, corporativismo e apadrinhamento entre poderes com desrespeito às leis e ao direito, submetendo presos provisórios e apenados da justiça às condições desumanas, indignas, inseguras, ociosas, insalubres, sem controle, sem oportunidades e a mercê das facções, com reflexo nocivo na segurança da população.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
PRESOS COMPRAVAM SAÍDA PARA O CRIME
Agentes penitenciários são suspeitos de cobrar pedágio para permitir que presos passassem o dia nas ruas, livres para assaltar e voltar ao entardecer - CARLOS ETCHICHURY E PEDRO MOREIRA, ZERO HORA 13/05/2012
Suspeitos de integrar uma quadrilha, cinco agentes penitenciários estão proibidos pela Justiça, desde o dia 13 de abril, de trabalhar nas prisões e nos albergues do Rio Grande do Sul.
Denunciados pelo Ministério Público (MP) por crimes como formação de quadrilha, falsidade ideológica, corrupção passiva e peculato, eles trabalhavam no Instituto Penal Padre Pio Buck, em Porto Alegre. Coordenariam um esquema em que presos pagavam pedágio para passar o dia nas ruas assaltando e retornar ao entardecer.
Pelos escaninhos da Vara Criminal do Partenon, na Capital, tramita um documento que ajuda a compreender a dinâmica da criminalidade na Região Metropolitana. Detidos pela polícia e condenados pela Justiça, presos que deveriam cumprir pena sob a custódia do Estado, no regime semiaberto, tinham liberdade para deixar o Pio Buck.
Nos oito volumes do processo 001/2.11.01040155, horas de interceptação telefônica, cópias de atestados médicos supostamente frios e depoimentos detalhados de presos, agentes e familiares de detentos indicam uma rotina assustadora por trás dos muros do albergue. Após três anos de apuração, a investigação identificou, entre 2007 e 2008, presos que eram beneficiados com atestados médicos adulterados (fornecidos por um auxiliar de enfermagem), com listas de presença forjadas (providenciadas por agentes penitenciários) e com um convênio informal, firmado com Fundação da Brigada Militar, para que os reclusos trabalhassem em uma olaria em Alvorada.
Nas ruas, se não fossem flagrados, dificilmente seriam condenados pelos delitos cometidos enquanto deveriam estar confinados, mesmo se reconhecidos por foto pelas vítimas. Para todos os efeitos, teriam um trunfo nas mãos: um documento oficial, espécie de salvo-conduto, mostrando que estavam sob a guarda da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) no momento do crime.
Além dos funcionários públicos, o MP ofereceu denúncia contra um auxiliar de enfermagem, uma advogada e cinco presos – três detidos, um foragido e outro em liberdade.
Sindicância de 2008 não viu problemas
Uma das testemunhas ouvidas pelo MP contou, em depoimento, que apenados pagavam para serem inseridos entre aqueles que produziam tijolos:
– (...) saía (sic) 20 presos (do Pio Buck) e chegavam na olaria 15 (...) liberando os demais pelo caminho. Quem pagava ia embora e quem não pagava ia trabalhar (...) eram inúmeros os presos que saíam pagando R$ 50 pelo dia inteiro e R$ 20 se fosse apenas à tarde.
Malfeitos no Pio Buck foram tema de reportagens. Na série Corrupção nas Cadeias, publicada em abril de 2010, ZH contou a história de um agente penitenciário, preso em flagrante quando extorquia R$ 600 de um comerciante lotado no albergue.
– Não toleramos desvios de conduta, mas todas as pessoas têm o direito de ampla defesa – pondera Gelson Treiesleben, superintendente da Susepe.
Em favor dos servidores da Susepe José Gonçalves, 60 anos, Paranaguá Leal Rodrigues, 54 anos, Paulo Henrique Paim Campos, 63 anos, Paulo Renato Vicente Macário, 57 anos, e Daniel Tadeu Medeiros Collar, 45 anos, há uma sindicância, instaurada em 2008, que apurou, em âmbito administrativo, os mesmos fatos. Nenhuma irregularidade foi constatada, e todos acabaram inocentados. Conforme Treiesleben, com as escutas telefônicas finalmente liberadas pela Justiça, um novo procedimento deve ser realizado.
A denúncia ainda não foi aceita pela Justiça. Sob análise da Vara Criminal do Partenon, os 12 suspeitos estão sendo notificados e terão direito a defesa prévia.
Nas próximas duas páginas, ZH revela detalhes do processo ao qual teve acesso na íntegra.
Um destino com escala
Foi a partir de um acordo informal que o grupo de presos do Pio Buck envolvido em um dos maiores esquemas de corrupção do sistema penitenciário gaúcho ganhou o direito de trabalhar na olaria da Brigada Militar em Alvorada, na Região Metropolitana.
À época, o local estava sob responsabilidade da Fundação Brigada Militar (FBM), uma entidade privada criada em 1997 para, entre outras funções, administrar bens do Estado por meio de convênios. A Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) não tem registro algum tanto das saídas quanto do trabalho dos detentos do albergue entre os anos de 2007 e 2008.
Diretor-presidente da FBM no período, o coronel da reserva Arlindo Bonete Pereira explica que uma empresa terceirizada, contratada pela fundação, administrava o trabalho na olaria. Conforme Bonete, a entidade apenas repassava verbas para que a empresa pagasse os presos, sem ter contato direto com os detentos.
– A administração do Pio Buck ofereceu o serviço. Foi um contrato verbal, uma experiência para saber se funcionaria. Como eram escolhidos os presos, como ficavam os presos, não sei te responder – diz o antigo diretor-presidente.
Produção da Olaria era destinada à BM
Além da olaria, um convênio com duração de cinco anos com a administração estadual permitiu à fundação manter sob sua responsabilidade outros bens da BM, como o Ginásio da Brigada na Capital e três fazendas no Interior. Bonete afirma que a entidade não recebia dinheiro do Estado pelo acordo, encerrado em meados de 2009 e não renovado por desinteresse do Estado. A ideia era administrar e renovar os bens durante o período.
À margem da freeway, nas proximidades do Distrito Industrial de Alvorada, a olaria que deveria ser o destino dos presos do Pio Buck hoje está inativa. Desde o final do convênio entre o Estado e a Fundação Brigada Militar, o local deixou de produzir os tijolos que eram vendidos ou utilizados para atender necessidades pontuais de unidades da BM ou de policiais militares.O local ainda aguarda uma definição do comando da corporação para receber um destacamento do 4º Regimento de Polícia Montada (RPMon), de acordo com o diretor do Departamento Logístico e de Patrimônio da BM, coronel Renato Fraga. O local deve abrigar 30 cavalos e 30 cavalarianos que vão atender Alvorada, Gravataí, Cachoeirinha e Viamão.
– Estamos tratando de reformas que são necessárias para receber os equinos e da reforma dos alojamentos – adianta o tenente-coronel Solon Beresford, comandante do 4º RPMon.
Papagaio teria sido extorquido
O assaltante de carro-forte Cláudio Adriano Ribeiro, o Papagaio, um dos criminosos mais conhecidos do Estado, teria sido extorquido em R$ 10 mil por agentes do Pio Buck. A denúncia, formalizada por Maria Helena Viegas, advogada do Papagaio, faz parte do processo sob análise da Vara Criminal do Fórum do Partenon, em Porto Alegre. Em 14 dezembro de 2007, Papagaio, então preso no Pio Buck, assava carne para agentes penitenciários. Em determinado momento, diz a denúncia, os agentes Paranaguá Leal Rodrigues e Daniel Tadeu Medeiros Collar teriam simulado apreensão de bebida alcoólica em poder de Papagaio. Como o consumo é proibido, um procedimento administrativo disciplinar foi instaurado. A punição seria voltar para o regime fechado, na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc).
Segundo Maria Helena, em depoimento ao MP, Papagaio teria dito:
– (...) Eles estão querendo dinheiro.
Para os promotores, a advogada narrou da seguinte forma o diálogo mantido com um dos agentes:
– (...) o agente Paranaguá disse que Cláudio não precisava ir para a Pasc, dependia só de vocês. Paranaguá disse que o valor que teria de ser pago era de R$ 10 mil para que Cláudio não fosse à Pasc. Paranaguá disse que o valor seria dividido com todos os servidores da casa.
Como o dinheiro não teria sido pago, Papagaio foi para a Pasc no dia seguinte. Permaneceu sete dias na penitenciária.
Preso morreu em assalto
Durante as investigações, mais de uma dezena de apenados, familiares e agentes informaram ao Ministério Público que presos, lotados no Pio Buck, pagavam agentes penitenciários para sair e cometer crimes. Pelo menos quatro apenados foram identificados assaltando quando deveriam estar trabalhando na olaria da Brigada Militar. Um deles foi Jorge Luiz Pereira de Oliveira, então com 38 anos, morto ao tentar roubar o Tempra de um policial militar. Na tarde de 30 de julho de 2007, com um revólver 38 em punho, Oliveira rendeu um PM à paisana na Rua Silvestre Félix Rodrigues, no bairro Sarandi. O soldado sacou uma arma e atirou.
Naquela tarde, Oliveira deveria estar na olaria da BM. Conforme apuraram os investigadores, ele entrou no veículo que conduzia presos do Pio Buck ao local, mas não chegou à olaria. Desceu no caminho. Nos arquivos do albergue, promotores e investigadores encontraram indícios materiais da fraude relatada. Havia duas folhas de registro com a assinatura de Oliveira – uma, no dia da morte do preso, com autorização para que ele fosse trabalhar e outra, um dia após morte, informava que o apenado estava em saída temporária.
Os suspeitos
1) JOSÉ GONÇALVES, 60 ANOS - DENÚNCIA: formação de quadrilha, corrupção passiva, concussão. CONTRAPONTO: ZH não o localizou.
2) PARANAGUÁ LEAL RODRIGUES, 54 ANOS - DENÚNCIA: formação de quadrilha, concussão, falsidade ideológica, corrupção passiva, peculato. CONTRATONTO: “Preferimos não nos manifestar neste momento”, diz a advogada Paula Louzada.
3) PAULO HENRIQUE PAIM CAMPOS, 63 ANOS - DENÚNCIA: concussão, corrupção passiva, formação de quadrilha. CONTRAPONTO: Campos não retornou as ligações de ZH.
4) PAULO RENATO VICENTE MACÁRIO, 57 ANOS - DENÚNCIA: formação de quadrilha, falsidade ideológica, corrupção passiva. CONTRAPONTO: ZH não localizou Macário.
5) DANIEL TADEU MEDEIROS COLLAR, 45 ANOS - DENÚNCIA: formação de quadrilha, falsidade ideológica, corrupção passiva, concussão. CONTRAPONTO: “Eu tô tranquilo, já respondi o que tinha para responder na corregedoria. Não tenho nada para falar”.
6) ADVOGADA KATIÚSCIA MACHADO DA SILVA, 34 ANOS - DENÚNCIA: formação de quadrilha, concussão, corrupção passiva. CONTRAPONTO: “É muito prematuro falar qualquer coisa. Ela nega que tenha participado de qualquer dos fatos que estejam atribuindo a ela e afirma que vai comprovar a sua inocência. Ela acredita que pode ter sido mal interpretada”, afirma Arima da Cunha Pires, advogada de Katiúscia
7) TÉCNICO EM ENFERMAGEM MARCELO RAMOS MATHEUS, 40 ANOS - DENÚNCIA: formação de quadrilha. CONTRAPONTO: ZH não localizou o técnico em enfermagem.
8) CESAR AUGUSTO FARIAS SCHEITER, 49 ANOS - DENÚNCIA: uso de documento falso. CONTRAPONTO: ZH não o localizou.
9) FRANCISCO DE JESUS MEDEIROS, 37 ANOS - DENUNCIA: uso de documento falso. CONTRAPONTO: condenado a 14 anos de prisão, está foragido, conforme a Susepe.
10) VALDEMIR DOS SANTOS PEIXOTO JUNIOR, 28 ANOS - DENUNCIA: uso de documento falso. CONTRAPONTO: condenado a 41 anos de detenção, está no Presídio Central. A Susepe não permitiu contato.
11) MANUEL JOSÉ SANTOS DOS SANTOS, 47 ANOS - DENUNCIA: corrupção ativa. CONTRAPONTO: cumpre pena no Instituto Penal de Viamão, está no regime semiaberto. A Susepe não permitiu o contato.
12) JADIR HENRIQUE FREITAS LEÃO, 36 ANOS - DENUNCIA: corrupção ativa. CONTRAPONTO: preso em flagrante, está detido no Presídio Central, ainda sem condenação. A Susepe não permitiu o contato.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Não é a toa que venho defendendo a construção de um SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL envolvendo instrumentos de prevenção, coação, justiça e cidadania e o comprometimento dos três Poderes do Estado. Entre os órgãos envolvidos no Sistema, existe a necessidade da criação de um Departamento de Monitoramento Penal para evitar este tipo de descaso, descontrole, corrupção, desvios, coação e abuso de confiança. Em países como os EUA, existem departamentos com agentes nomeados e contratados para monitorar presos soltos sob condições da justiça, com poder de pedir o retorno à prisão e a cassação do benefício se os requisitos não forem cumpridos. Aqui no Brasil, o monitoramento é feito pelo advogado do preso, pelo amigo do preso, pelo empresário desavisado, pelo gestor desatento e pelo empregador amedrontado pelo preso.
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