domingo, 18 de março de 2012

LIVROS: COMPANHIA NO CÁRCERE



Livros abertos, caminhos abertos - LARISSA ROSO, ZERO HORA 18/03/2012

A partir de doações da população, o Banco de Livros implementa bibliotecas em escolas, hospitais e associações de bairro em todo o Rio Grande do Sul. Em novas parcerias com o governo, a entidade agora leva acervos a penitenciárias e centros de recuperação, na tentativa de transformar a literatura em um componente essencial na jornada de reabilitação de jovens e adultos.

Encerrada a consulta com a assistente social, o garoto saiu carregando uma dúvida improvável. Estava diretamente relacionada à rotina que já somava 13 meses de confinamento e às intempéries familiares que continuavam surgindo em casa, num bairro da periferia de Porto Alegre, apesar de sua ausência.

– O que que é “cativar”? – perguntou ele a uma funcionária do Centro de Atendimento Socioeducativo POA 1 da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), na Vila Cruzeiro, na Capital.

Maria Regina Abbud Dorneles, agente socioeducativo há 21 anos na instituição, acostumada com a clientela de lares desfeitos e ingresso precoce na vida criminosa, descartou imediatamente a resposta mais fácil. Embalada por um afeto singular que desenvolveu pelo menino – acha-o muito parecido com o neto de cinco anos, e acostumou-se a mostrar fotos de um para o outro –, prometeu emprestar-lhe um livro com a mais precisa descrição que conhecia da palavra.

– “És eternamente responsável por aquilo que cativas” – recitou a fã de O Pequeno Príncipe. – Te trago amanhã – garantiu Maria Regina ao interno, usuário de maconha e cocaína que abandonou a escola na 7ª série do Ensino Fundamental, envolveu-se em assaltos, chegou à entidade depois de participar de um latrocínio (roubo com morte) e jamais ouvira falar de um dos maiores clássicos da literatura infantil.

Multiplicadores como Maria Regina são essenciais para a efetividade de um dos mais recentes projetos do Banco de Livros do Estado. Para atrair um público geralmente alheio ao universo da literatura, que em boa parte das vezes jamais viveu a experiência de se envolver com uma história escrita, vem espalhando bibliotecas por instituições prisionais e centros de recuperação de crianças e adolescentes como a Fase.

Até o final do ano, em parcerias firmadas com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) e com a Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do Estado, a meta é inaugurar ou recuperar espaços exclusivos para o empréstimo de títulos nas 97 casas prisionais do Rio Grande do Sul.

Enredos sem cenas de sexo ou violência

Inaugurado em 2009, o banco, mantido pela Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), atua centralizando doações, organizando acervos para hospitais, creches e asilos e capacitando agentes de leitura. Nesses dois anos e meio de atividade, entre doações e repasses a bibliotecas inauguradas ou remodeladas, circularam por lá mais de 506 mil exemplares.

O interno da Fase, recém-apresentado à obra mais famosa de Antoine de Saint-Exupéry, caracteriza bem o perfil do leitor médio desse tipo de instituição por combinar dois fatores comuns: baixa escolaridade e histórico de consumo de drogas, o que compromete o desenvolvimento cognitivo e o desempenho nos estudos.

Ao selecionar os títulos que serão distribuídos, privilegiam-se narrativas curtas, como contos, crônicas e histórias em quadrinhos. Os livros devem ter enredos simples, com poucos personagens, para fácil assimilação. Textos muito longos podem desencorajar quem teve pouca vivência escolar. Temas como sexo e violência, que não combinam com um ambiente de recuperação e tantas restrições, são proibidos.

– É como se eu fosse selecionar material para crianças de seis, sete anos – diz a bibliotecária Neli Miotto, responsável pelo acervo do banco, que lê muitos dos livros antes de encaminhá-los às entidades para não correr o risco de disponibilizar a presos e internos as leituras inadequadas.

“Não tinha nem cabeça para ler”

Conforme o combinado, Maria Regina entregou O Pequeno Príncipe ao adolescente no dia seguinte. O jovem, que antes de ser recolhido à Fase dormia todas as noites com um revólver calibre 38 ao lado do travesseiro, lembra, apesar da quase maioridade, de ter folheado um único livro em algum momento do Ensino Fundamental incompleto – Pé de Pilão, do qual é incapaz de fazer um resumo.

– Não gosto muito de ler. Não tenho muita paciência, não consigo ficar parado – justificou ele, comprometendo-se a enfrentar, mesmo assim, as 90 páginas do best-seller.

Dias depois, mais um episódio de não ficção, em sua própria vida, passou a exigir total atenção. Em uma das visitas semanais, a mãe do adolescente trouxe a notícia: a irmã de 14 anos, baleada em circunstâncias até então mal esclarecidas, não voltaria a andar.

– Não deu vontade. Não tinha nem cabeça para ler – justificou o adolescente.

Maria Regina fez um diagnóstico: O Pequeno Príncipe, com a história de amor entre um menino e uma flor, representou uma carga de afeto muito pesada para uma existência tão carente.

– O Pequeno Príncipe longe da rosa, ele longe da família – avalia a agente.

Pouco depois, ela recebeu o livro de volta. Acomodado entre as primeiras páginas, voltou também um bilhete de incentivo que havia escrito. O jovem alegou não ter conseguido decifrar a caligrafia da monitora.

A carta em folha de caderno trazia outro ensinamento do protagonista do livro que jamais foi lido: “É preciso suportar duas ou três lagartas se quiser conhecer as borboletas”.


Vilões da vida real e dos gibis

Ele não foi preso pelo crime mais grave que cometeu, um assassinato. Uma série de três assaltos em uma mesma noite o levou à Fase, há um ano, encerrando um período que descreve assim: dois anos fazendo algo errado todos os finais de semana. O tio era “linha de frente” (gíria para quem lidera o grupo e parte primeiro para o ataque contra um grupo rival) de uma gangue, e ele foi no embalo. Para manter intacta a honra desse tio, ele matou um desafeto que se atreveu a caçoar dele em uma festa. Reprovado múltiplas vezes na escola regular – duas, três ou cinco vezes, não sabe ao certo –, voltou a estudar na escola que funciona dentro da instituição.

Sua experiência como leitor, até a inauguração da biblioteca do Banco de Livros, somava dois títulos. Mostra com os dedos: um deles “grosso assim”, que não consegue recordar, e outro “assim”, um tanto menor: a história de Pinóquio. Num relato hesitante, que esbarra na memória pouco eficiente, resume o livro:

– Tinha a fada madrinha. Tinha três moedas de ouro que o Pinóquio tinha ganhado. Tinha um lobo e mais um bicho que eu não lembro, um coiote, um bagulho assim. A fada madrinha viu ele pendurado pelo pescoço e pediu para um corvo tirar ele de lá. Ela deu remédio com uma pedrinha de açúcar. O Gepeto estava procurando ele, e um tubarão comeu. Um carroceiro passou e levou as crianças para uma terra em que só tinha alegrias. Só alegrias, assim, sabe? – finaliza.

“Dormi e sonhei que estava em casa”

Do enredo caótico, pinçou uma lição:

– Tem que ser bem-educado. A má educação leva a coisas ruins. Quando ele recém foi feito, ele desrespeitou o pai dele.

Calcula ter lido 150 gibis desde então. Prefere os de super-heróis, em que reencontra, em cores bem mais suaves, o universo que foi obrigado a abandonar. Gosta de enredos com lutas e assassinatos a sangue-frio. Lembra de quando presenciou uma execução com um tiro na cabeça da vítima. Na primeira vez em que testemunhou alguém sendo ferido por arma de fogo, tremeu. Com as experiências seguintes, logo se acostumou.

– Não quero brigar, quero ver briga – salienta o garoto, esclarendo que agora lhe bastam os confrontos da ficção.

O interno decorou as paredes de sua cela com páginas de histórias em quadrinhos levadas pela avó nos dias de visita. Entretido, ele dedica até 1h30min aos quadrinhos protagonizados por personagens como Capitão América, Hulk e Homem de Ferro.

– Um dia dormi e sonhei que estava em casa – diz o filho de pais dependentes químicos, moradores de rua.

Elas buscam a superação

A lista com o registro dos livros emprestados nos primeiros dias, ao lado do nome, da cela e da galeria de cada detenta, ilustra bem o que buscam as leitoras da Penitenciária Feminina de Guaíba, a primeira a receber um acervo do Banco de Livros. O Silêncio dos Amantes, Agora Estou Sozinha, Nunca É Tarde Demais, Otimismo em Gotas representam o que ficou do lado de fora ou o que se tentará resgatar depois de cumprido o período de detenção – os casos, na maior parte, são relacionados a envolvimento com tráfico de drogas.

– Pedro e Janaína se conheceram numa ilha e estão agora em “loves”, mas os pais não querem que eles fiquem juntos. Uma família é contra a outra – explica Simone, 25 anos, sobre um dos títulos da série Bianca. – O amor une, não tem. O amor é inexplicável.

Ociosidade é um dos principais problemas

Simone, detida por assalto e na expectativa da progressão da pena para o regime semiaberto, encontrou na tarefa de voluntária da biblioteca o que buscou na maior parte dos cinco anos de encarceramento: uma distração para o tempo ocioso, apesar de se ocupar com tarefas do dia a dia na penitenciária.

– A ociosidade, a cabeça vazia, é um dos maiores problemas. A leitura é uma distração e pode, pelo menos, despertar a curiosidade – afirma a psiquiatra Thaís Ferla Guilhermano, que desenvolveu sua dissertação de mestrado em Ciências Criminais acompanhando detentas do Madre Pelletier, na Capital.

Para Viver sem Sofrer, de Luis Antonio Gasparetto, foi suficientemente marcante para que Simone acredite que o hábito da leitura vai transpor os limites da penitenciária.

– Tive muitas perdas: mãe, pai, irmão, vô, vó. Me sinto muito sozinha. O livro me ensinou a ter mais cuidado com quem a gente convive. Tem que olhar para a frente, mas é difícil. Atrás dessas portas, a realidade é muito dolorosa.

Diretora do Departamento de Tratamento Penal da Susepe, a psicóloga Ivarlete de França destaca que, para o dependente químico, a oferta de atividades é ainda mais importante.

– A ociosidade e o cerceamento da liberdade contribuem para que ele desenvolva outros vícios. A droga ocupa um lugar na vida da pessoa. Temos que oferecer outros interesses – explica Ivarlete.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Livros são excelentes, mas só os livros não conseguem evitar a ociosidade. Defendo uma reforma na constituição para que o trabalho prisional seja obrigatório, e que todos os presídios e centros de internação tenham, além de bibliotecas, oficinas de trabalho dentro do estabelecimento e outras em forma de rede anexa, de maneira que todo apenado trabalhe. Aquele que não se sujeitar ao trabalho, deve cumprir a pena em Presídio ou Centro de Internação de Segurança Extrema, já que a "segurança máxima" está desmoralizada no Brasil. Para reabilitar os jovens infratores, o Estado deveria construir Centros de Internação em todos os municípios do RS, adaptados com oficinas de trabalho, aprendizagem técnica, estudo multidisciplinar, orientação vocacional, identificação de talentos e alfabetização.

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