O ESTADO DE S.PAULO - 06 de abril de 2013 | 17h 52
1/3 dos presídios tem superlotação igual ao Carandiru
Às vésperas do júri do massacre, sistema carcerário de São Paulo atinge 200 mil presos. Superpopulação colaborou para a tragédia
Bruno Paes Manso, William Cardoso, Danielle Villela, Diego Cardoso e Luciano Bottini
Passados pouco mais de 20 anos do massacre do Carandiru, um terço dos presídios paulistas está com lotação maior que a da Casa de Detenção na época em que 111 presos foram mortos, em outubro de 1992. Às vésperas do julgamento da maior chacina de detentos da história de São Paulo, o sistema penitenciário paulista ultrapassou os 200 mil presos, com 198.476 nas 156 unidades prisionais da Secretaria de Administração Penitenciária e 5.205 em cadeias da Secretaria da Segurança Pública.
A superlotação do Carandiru foi apontada como uma das causas do massacre. As mortes ocorreram depois que dois presos iniciaram uma briga que rapidamente levou a uma rebelião. Policiais militares foram chamados para conter os rebelados e acabaram provocando o massacre. Segunda-feira, 26 serão julgados no Fórum da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, acusados pela morte de 15 presos no 2.º pavimento do pavilhão 9.
O caso do Carandiru não foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos porque o Estado de São Paulo se comprometeu a diminuir a lotação no sistema penitenciário, o que não ocorreu. Hoje, considerados os 77 presídios paulistas, 28 têm mais que o dobro de presos em relação à capacidade. Na época do massacre, o Carandiru tinha pouco mais que o dobro de presos por vagas (7.257 para 3,5 mil).
“A situação no sistema penitenciário é hoje pior do que há 20 anos”, afirma a professora de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC Camila Nunes Dias. “Nos Centros de Detenção Provisória o drama é ainda maior. Como faltam funcionários para administrar essa superpopulação, cabe hoje aos próprios presos, integrantes do Primeiro Comando da Capital, assumir a tarefa.”
Em quatro presídios, o total de presos chega a ser duas vezes acima do número de vagas. Em Hortolândia III, no interior, há 500 vagas para 1.650 presos. O complexo penitenciário da cidade é formado por três presídios, três centros de detenção provisória e um centro de progressão penitenciária. As unidades receberam parte dos presos do Carandiru no período de desativação e implosão do complexo, em 2002, e ganharam o apelido de “Carandiru caipira”.
Em 1992, São Paulo tinha 32 unidades penitenciárias, com taxas de 94,4 presos por 100 mil habitantes. O total chegou a 481 presos por 100 mil habitantes nos dias de hoje, espalhados em 156 unidades em todo o Estado.
A situação se transformou em um problema para os funcionários das penitenciárias, que reclamam da falta de segurança e do excesso de tarefas. “Vira um problema sério fazer uma revista ou uma blitz, por causa da falta de funcionários. Entendo que, em determinado momento, vai estourar. Estão entrando no sistema penitenciário paulista 3 mil novos detentos por mês, e o ritmo de construção de presídios não acompanha”, afirma o presidente do Sindicato dos Agentes e Servidores do Sistema Penitenciário, Daniel Grandolfo.
Para os promotores Márcio Friggi e Fernando Pereira da Silva, que vão atuar na acusação dos PMs no julgamento do massacre do Carandiru, a morte dos 111 presos foi fundamental para a formação do PCC. “Vamos nominar as coisas. O PCC começou depois do massacre, sem dúvida. No estatuto do PCC, há uma cláusula a respeito disso. Basicamente, a ideia do estatuto é que casos como esses não voltassem a ocorrer”, disse Silva.
'Eles subiram e foram matando dezenas', lembra sobrevivente. Missionário Francis Lins tinha 25 anos e estava preso havia 5 quando ocorreu a tragédia
Bruno Paes Manso, Danielle Villela, Diego Cardoso e Luciano Bottini
O missionário Francis Lins, de 45 anos, estava no Pavilhão 9 do Carandiru no dia 2 de outubro de 1992. Tinha 25 anos e estava, havia 5, preso por assalto a mão armada, homicídio qualificado e furto qualificado. Antes de ser preso, levou diversos tiros que lhe deixaram marcas no corpo. Depois de sobreviver ao massacre, passou a atuar em evangelização e a viajar pelas igrejas do interior para contar sua história. Chamava o Carandiru de “a casa do diabo velho”, um lugar muito difícil de sobreviver.
Como começou o massacre?
Foi uma briga entre dois presos. O Braba e o Coelho. Um esfaqueou o outro. Aconteceu do nada, não foi premeditado.
E depois?
Um deles foi para a enfermaria e o outro se apresentou na carceragem, numa cela de disciplina. Só que os amigos do ferido compraram a briga e tentaram invadir a carceragem. Os funcionários abandonaram o pavilhão achando que era uma rebelião. Aí começou o quebra-quebra. Os presos passaram a andar com facas e madeira, para se defender na briga.
Onde o senhor estava?
No quinto pavimento, na cela dos crentes. Depois de dois anos na prisão, eu virei evangélico.
Quando chegou a Tropa de Choque, o que ocorreu?
Eles deram rajada de metralhadora no portão, subiram e foram matando dezenas de vidas. Eles vieram cantando: “O Choque chegou. Vocês pediram e o Fleury mandou”. Os presos foram tirando a roupa, nus, para mostrar que não iriam enfrentar a polícia. Porque preso não enfrenta a Tropa de Choque. Como ele vai enfrentar se tem faca e a polícia metralhadora? Por meia hora eles mataram gente.
A PM agiu em legítima defesa?
Não. Os presos jogaram as facas no pátio, ficaram nus e entraram para as celas, em sinal de rendimento.
Quando o senhor encontrou a PM?
Eu estava na cela e eles me mandaram sair arrastando de barriga. Me deram chutes, eu vi corpos empilhados. Fiquei quatro horas no pátio interno, pelado e com a mão na cabeça.
O senhor teve de ajudar a carregar corpos?
Não. Eu vi muitos presos sendo obrigados a carregar, mas não foi o meu caso. Quando a gente estava no pátio, eles mandavam presos subirem as escadas. A gente ouvia rajada de metralhadoras e os presos não desciam mais. Dois amigos meus do Carandiru estão enterrados aqui (no Cemitério de Guaianases, na zona leste, onde a entrevista foi concedida).
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