terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SAÚDE NO CAOS - DOUTOR CENTRAL GANHA O RESPEITO DOS DETENTOS


O DOUTOR CENTRAL. Clodoaldo atua há 30 anos no presídio. Médico e funcionário da Susepe, panamenho ganhou respeito dos detentos - EDUARDO TORRES | ESPECIAL, Zero Hora 28/12/2010

Os sintomas são diarreia, febre e dores no corpo, isso há uns 10 dias. O médico receita algo em um papel e sai da sala de atendimento. Minutos depois, o enfermeiro chama ele de volta à sala. O paciente não queria a medicação injetável. Dois minutos de conversa e o paciente já está deitado na maca, pronto para ser medicado. Ali, não há quem não abaixe a cabeça em respeito ao “Padrinho” Clodoaldo Ortega Pinilla.

Acena não é em um consultório médico ou em um posto de saúde. Mas no ambulatório do Presídio Central. Neste ambiente que Clodoaldo Ortega Pinilla, 65 anos, é uma unanimidade. Não há bandido, mesmo os mais perigosos, que não respeite o panamenho de nascimento e porto-alegrense por adoção.

– Eu não tenho detentos, tenho pacientes – como ele mesmo define.

Não seria diferente com o paciente da manhã da quarta-feira, dia 22. Marcos está no Central há cinco meses, e tem 23 anos. Quando nasceu, Clodoaldo já trabalhava ali. É médico do Central há 30 anos.

Virou exemplo e porta-voz de uma triste transformação na saúde penitenciária gaúcha. Chegou em 1980 como um dos 18 médicos que formavam a equipe do Hospital Penitenciário, que atendia aos 1,2 mil detentos do Central e do restante do Estado. Viveu a derrocada completa do sistema, junto com a superlotação da casa, no começo da década, quando sobraram só dois médicos para 4 mil presos e ganhou status de quase herói, com a única equipe médica – hoje com 12 profissionais – dedicada ao Central.

É o líder natural, pela experiência, do ambulatório que chega a causar inveja pela limpeza e organização a alguns postos de saúde. Na semana que antecedeu o Natal, o Central chegou a 5.182 presos, e desde o início do ano o ambulatório prestou mais de 100 mil atendimentos. Números excelentes, não suficientes.

– A equipe de hoje consegue atender bem, mas é difícil ter garantia quando o número de pacientes não para de aumentar, e o saneamento das celas é cada vez pior. O ideal seria termos mais equipes de saúde aqui dentro, ou novos presídios. Mas com estruturas ideais – avalia Pinilla.

Próximo ano é de incerteza

No fim do ano, quando convênio do Estado com o Hospital Vila Nova terminar – ainda sem nenhuma garantia de renovação –, Clodoaldo continuará sendo a tábua de salvação dos detentos, porque é servidor da Susepe. Sabe-se lá com quantos outros médicos.

– Essa gente precisa é de médicos de verdade. Isso é o que fazemos aqui – diz, em tom sério.

Mas não descuida da malandragem que só quem convive há 30 anos com o mundo do Central aprende, depois de medicar o Marcos no próprio ambulatório:

– Nas celas, remédio vira produto de mercado. Analgésico, antitérmico, antibiótico, tudo tem um preço.

A vida no caos

Clodoaldo chegou ao Presídio Central em 1980, quando a casa tinha 1,2 mil detentos e 18 médicos atendendo no Hospital Penitenciário. A partir de 1995, a população carcerária explodiu e, em 2003, quando já eram mais de três mil presos, o pavilhão onde funcionava o hospital deu lugar a novas celas. Restaram quatro médicos, e depois só dois. O primeiro investimento efetivo na saúde prisional só aconteceu novamente este ano, com um convênio entre o Estado e o Hospital Vila Nova. Hoje uma equipe de saúde por turno presta o atendimento aos 5.182 presos. O ideal seriam dez equipes. No final do mês termina o convênio e a renovação deveria ser feita pela Prefeitura de Porto Alegre, mas não há garantia de que isso aconteça.

A ética própria

Médico em presídio sempre tem fama de dedo-duro. Mas Clodoaldo quebrou essa regra, talvez porque tenha adotado o seu próprio código de ética:

– Eu não sou a justiça, não entro no mérito do que cada um fez para estar aqui. Sou médico.

Pelas mãos do doutor Clodoaldo, como também é conhecido nas galerias, já passaram os maiores líderes do crime no Estado. Foi ele quem amputou a perna do bandido conhecido como Gordo – parceiro de roubos de Seco – e operou o joelho do próprio Seco.

Chegada da “maldita”

Na farmácia do Central há um armário onde ficam empilhadas caixas e mais caixas de camisinhas. É o “remédio” para a primeira – e talvez mais fatal – crise enfrentada por Clodoaldo no Presídio Central.

– Em 1984, quando foi oficialmente identificada a aids no Brasil, é possível que já morressem presos por isso, mas não se sabia o que era. Foi um problema progressivo, que nos anos 90 atingiu o ápice. Até hoje eu me empenho em trabalhar a consciência deles – lembra.

Hoje, são 92 detentos acompanhados com medicação específica contra a Aids no Central. Há mais casos de soropositivos, mas sem a necessidade do tratamento.

A crise da pedra

O crack chegou ao Presídio Central como um câncer, que debilita com uma velocidade jamais vista o ambiente precário da cadeia.

– O usuário do crack não se alimenta direito, não ingere líquidos e tem resistência a tomar medicação. Para qualquer paciente já seria difícil cuidar da saúde em um ambiente como uma cela superlotada, imagine para um viciado – avalia o médico.

A partir da droga, surge a porta de entrada para a tuberculose, que chega a até 10% da população carcerária. O maior índice proporcional da doença no mundo. Há projeto para a criação de 18 novos leitos específicos para dependentes.

O porta-voz

Não houve casos de Gripe A no presídio. Foi Clodoaldo quem tomou a linha de frente para evitar o contágio que seria catastrófico naquele ambiente. Em uma reunião direta com o secretário de Segurança, ele determinou a proibição da entrada na cadeia – para visitas – de pessoas com algum sintoma da doença. Logo, todos os detentos foram vacinados contra a nova gripe.

A negociação para a criação do laboratório de detecção da tuberculose este ano no Central também teve participação direta do médico:

– Era um problema visível de uns 15 anos para cá. Hoje temos uma estrutura exemplar.

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