quinta-feira, 6 de junho de 2013

A CASA DOS MORTOS


Código Penal define o tempo máximo de detenção no Brasil em 30 anos, o que não vale para internados em manicômios judiciários, que sabem quando entram, mas não quando vão sair

Renata Mariz - Correio Braziliense



Iano Andrade/CB/D.A Press


Nenhum cidadão brasileiro pode, por pior ato que tenha praticado, ficar mais de 30 anos preso. Está garantido no Código Penal, artigo 75. Mas a regra não vale para todos. Geraldo* passou as últimas três décadas da vida atrás das grades por ter furtado uma pasta de documentos com 100 cruzeiros, o que corresponderia hoje a menos de R$ 15. Pela insignificância do crime, o homem, de 58 anos, que permanece detido em Porto Alegre (RS), nem deveria ter sido trancafiado. Uma característica, porém, diferencia Geraldo da maioria dos demais brasileiros. Ele sofre de esquizofrenia paranoide e algum retardo mental. Embora o ordenamento jurídico recomende tratamento para pessoas com distúrbios psiquiátricos, e não cadeia, a vida real tem se encarregado de condená-las à prisão perpétua.

Existem hoje no Brasil cerca de 5 mil pessoas em manicômios judiciários, também chamados de hospitais de custódia, distribuídos em 17 unidades da Federação. A média de internação nesses locais, onde reina a lógica prisional no lugar da médica, ultrapassa uma década. É fácil encontrar gente com 20, 30 e até 40 anos nas instituições. Na gíria dos próprios pacientes, viraram “patrimônio”, sumiram socialmente. “Como em boa parte dos crimes, a ocorrência se dá no contexto familiar, o processo de retorno à casa é muito complicado. Às vezes, você já tem o laudo médico recomendando a desinternação do paciente, mas não há para onde mandá-lo”, explica Ana Cristina de Alencar, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

É o que ocorre com Alberto*, há 32 anos no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, no Rio de Janeiro. Internado desde 1977, por homicídio, o homem que entrou aos 31 anos na cadeia e hoje tem 63 já sonhou em ganhar as ruas, gozar a liberdade, com o aval dos médicos da instituição. “Do ponto de vista psicológico, apresenta condições de ser desinternado…”, repetem dezenas de laudos anexados ao prontuário dele desde a década de 1990. Mas o exame de saúde positivo, que assegura a estabilidade de sua esquizofrenia, não é suficiente para libertar Alberto. Na hora de autorizar o livramento, os juízes também avaliam o vínculo familiar. Na falta dele, costumam negar a “alta”.

Hoje, o homem que passou mais da metade da vida preso anda amuado em sua cama. “Estou dormindo”, diz Alberto, para abreviar o papo, na cela dividida com três internos. Já Geraldo, trancafiado em Porto Alegre há 30 anos por causa de aproximadamente R$ 15, planeja coisas comuns para o dia em que puder ser livre. “Quero trabalhar e dançar. Em casa, porque nos bailes a gente gasta dinheiro”, adverte. Ele conta que era bom no forró, até o episódio do furto. “Foi uma confusão de uma pasta no centro”, comenta Geraldo, que tinha histórico de 12 internações em hospitais psiquiátricos antes de ser levado ao manicômio judiciário.

Cadeados O ambiente nessas instituições se diferencia do funcionamento de qualquer penitenciária por um único detalhe. Durante o dia, a maioria dos internos pode caminhar em áreas coletivas. Esquemas de segurança são menos rigorosos, até porque dificilmente há tentativas de fuga. Ao fim da tarde, entretanto, agentes carcereiros, e não funcionários da saúde, passam os cadeados nas celas, que deveriam ser enfermarias. A precariedade das instalações assusta olhos pouco habituados ao caos dos presídios. Roupas penduradas nas celas e muitas garrafas plásticas de refrigerante repetem-se a cada cubículo. “Eles pegam água no bebedouro, lá embaixo (no pátio), para passar a noite”, explica o inspetor Paulo Roberto Figueiredo, do Heitor Carrilho, no Rio, onde estão em torno de 160 pacientes hoje.

Em Porto Alegre, no Instituto Psiquiátrico Forense Dr. Maurício Cardoso (IPF), a situação não é muito diferente. O pavilhão que abriga dependentes químicos tem espumas sem capa que servem de colchão. É difícil não ter náuseas ao entrar nos banheiros com latrinas encardidas. O barulho, habitual em unidades psiquiátricas convencionais, é bem menos intenso nos manicômios judiciários. Muita gente simplesmente dorme. No Rio de Janeiro, ao fim de cada corredor com celas, uma chapa de aço faz as vezes de espelho. Andreia, 34 anos, há três internada por ter agredido o próprio filho, se penteia diante das próprias formas distorcidas. “Gosto de me cuidar”, admite.

Para tratar os distúrbios mentais dos pacientes, equipes formadas geralmente por psiquiatras, psicólogos e profissionais da enfermagem são contratadas. A falta de funcionários, entretanto, é corriqueira. “Temos constatado carência em todos os sentidos. Há resistência dos profissionais em atuar com essa população teoricamente violenta”, diz Elias Abdalla, do Departamento de Psiquiatria Legal da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que faz um levantamento sobre os manicômios judiciários brasileiros. Na parte de terapia, os espaços destinados a oficinas de pintura, teatro, entre outras atividades, quando existem, funcionam de forma precária.

Duplo estigma “A administração dos hospitais de custódia continua ligada à gestão prisional e não à saúde. Por que essa diferença entre o paciente que praticou crime e o que não praticou? A Lei 10.216 (que rege o atendimento em saúde mental no país) não faz essa distinção”, critica Carmen Sílvia Barros, defensora pública em São Paulo. Diretor do IPF, o psiquiatra Rogério Cardoso concorda com o raciocínio, mas tem dúvidas sobre a perspectiva de melhora. “Teoricamente, seria melhor se o sistema estivesse com a saúde, mas do jeito que anda a prestação de serviços na área nem dá para saber”, alfineta o médico.

Tanto faz na saúde ou na segurança pública. Para José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, o interno de manicômio judiciário será duplamente estigmatizado sempre. “Ele carrega as duas marcas, de louco e de criminoso. Enquanto o que é somente criminoso pode ter progressões de regime, remissão da pena, o louco, não”, lamenta.

* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados

PERFIL - Pesquisa realizada em Porto Alegre (RS) mostra o perfil  da população de manicômios judiciários. Os resultados representam a realidade das demais instituições do país

60% têm esquizofrenia
33% cometeram ao menos um homicídio, ato mais comum
89% são homens
40% tinham de 20 a 29 anos no dia do delito
Fonte: Levantamento com 618 internos no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF)

Castigo 

De uma cela isolada, vedada por um portão espesso de ferro, com uma pequena abertura na parte inferior, quase rente ao chão, surgem dois rostos. Uma mulher negra e outra de pele alva pedem socorro. Os gritos são agudos, assustam as outras internas que estão na fila para o almoço. Verônica*, de 24 anos, conta que está há quase um mês no cubículo, que fica em uma área distinta das demais celas do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, .

“Aqui tem rato, barata. A gente não toma banho, estamos no inferno”, berra Verônica*. Disputando a pequena abertura na porta de aço, a outra mulher implora por ajuda. “Estou há três anos neste lugar (referindo-se ao manicômio judiciário), me tira daqui”, suplica. O inspetor da unidade, Paulo Roberto Figueiredo, explica que é necessário colocar internos separados dos demais quando há brigas. “Se deixamos as duas lá na ala feminina, mesmo que em local isolado, tem gritaria e confusão do mesmo jeito”, diz.




* DOCUMENTÁRIO: "A CASA DOS MORTOS" - A TRÁGICA REALIDADE DOS MANICÔMIOS JUDICIAIS

PRESOS COM DISTÚRBIOS MENTAIS COSTUMAM PASSAR O RESTO DA VIDA EM MANICÔMIOS

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