quarta-feira, 21 de abril de 2010

CORRUPÇÃO NAS CADEIAS DO RS - Rotina de espancamentos. Corregedor não vê constrangimento. Gov. Yeda aposta na reação.

CORRUPÇÃO NAS CADEIAS RS - Rotina de espancamentos - CARLOS ETCHICHURY E JULIANA BUBLITZ - Zero Hora - 20/04/2010 -

Sem dinheiro para pagar pensão alimentícia, o padeiro desempregado Claudio Roberto Severo Spencer, pai de quatro filhos, foi condenado pela Justiça a dois meses de prisão, mas ficou apenas cinco dias no Presídio Estadual de São Gabriel.

Torturado com choques elétricos, socos e pontapés por agentes penitenciários, Spencer, 40 anos, cumpriu o resto da pena num hospital e no Batalhão da Brigada Militar – ambiente capaz de garantir a sua integridade física. Em crise de abstinência de álcool, Spencer importunava companheiros de cela na madrugada de 30 de novembro. Para mostrar como o padeiro deveria se comportar, agentes penitenciários aplicaram-lhe um corretivo. Retiraram-no da cela, algemaram-no com as mãos para trás e o espancaram, até desfalecer. O parlatório, local escolhido para o martírio, era conhecido como “salinha da tortura”. O suplício imposto ao padeiro ganhou visibilidade porque a vítima não era um bandido.

– Os demais presos estavam revoltados porque quem apanhou é um pobre infeliz, conhecido na cidade, que não é bandido como eles, entende? Na prisão, existe uma cultura entre os próprios detentos de que bandido pode apanhar. Por isso que a gente não fica sabendo de nada. E incrível, mas é assim que funciona – conta a promotora de São Gabriel Ivana Battaglin, que gravou o depoimento de Spencer quando ele ainda estava no hospital, recuperando-se da surra.

Funcionária de um dos mais tradicionais restaurantes da cidade, Marlene Severo Spencer, 42 anos, irmã do padeiro, desabafa:– Se fizeram isso com o meu irmão, imagina o que fazem com os outros presos. Queremos justiça.

Será difícil saber, com precisão, como eram tratados apenados em São Gabriel. Uma ex-detenta de 27 anos, que cumpriu pena no Presídio Estadual (há um anexo para mulheres), revelou a Zero Hora o que presenciou.

– Uma vez, há uns três anos, agentes pegaram um preso, conhecido meu, que tinha tentado fugir, e quase quebraram de tanto bater. Eles usavam um alicate. Um agente puxava a língua do cara e outro batia com a parte de fora de uma colher na língua esticada – conta a ex-apenada, em entrevista concedida na sede da promotoria da cidade.

Ao todo, além dos dois supostos agressores, outros quatro servidores da Susepe foram denunciados pelo crime de tortura, incluindo o diretor da prisão e o agente Alexandre Silveira, um reincidente.

Em 1º de junho passado, Silveira envolveu-se num episódio semelhante, na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc), quando agentes supostamente espancaram um preso. Após as agressões, Silveira foi transferido para São Gabriel.

Contraponto - O que diz Lúcio de Constantino, advogado de Alexandre Silveira - “Estamos numa área extremamente delicada, que é o sistema penitenciário. O nosso sistema, no Rio Grande do Sul, é um dos piores do país. O Estado cobra comportamento ético, com razão, mas não dá estruturas necessárias. É complexo buscar um elemento culpado quando o sistema como um todo está putrefato e ninguém toma providência. Quando vem uma denúncia de tortura praticada por agentes temos de buscar, primeiro, os responsáveis pela tortura do sistema como um todo”.

Proposta limita horário de agentes

Durante a solenidade de inauguração de três albergues para 450 presos do regime semiaberto, a governadora Yeda Crusius anunciou que criará um plano de carreira para agentes penitenciários e limitará a carga horária diária dos carcereiros em oito horas. Ontem, foram entregues albergues na Penitenciária Estadual do Jacuí, em Charqueadas, no Instituto Penal de Viamão (IPM), em Viamão, e no Instituto Psiquiátrico Forense (feminino), em Porto Alegre. Serão beneficiados de imediato 370 presos com direito à progressão de pena, mas que continuam no regime fechado por falta de vagas. Yeda definiu as obras, que preveem 3,4 mil vagas até o final do ano, e as medidas para valorizar agentes e presos como uma tentativa de frear a realimentação do crime. A secretária-geral de Governo, Ana Pellini, relatou a situação dos presos. Ressaltou que todas as mudanças estão sob o guarda-chuva chamado Novo Paradigma da Segurança Pública, um conjunto de medidas que prevê maior eficiência no setor de segurança. Está prevista para segunda-feira a inauguração de outras 600 vagas no semiaberto, em Osório e em Novo Hamburgo.

“ENTREVISTA - Não vejo constrangimento para a corregedoria”
- Homero Negrello, Corregedor da Susepe e acusado de omissão em caso de tortura em penitenciária. Confira trechos da entrevista concedida pelo corregedor da Susepe, Homero Diógenes Negrello:

Zero Hora – Entre 2000 e 2009, 12 agentes foram expulsos da Susepe. No mesmo período, a Polícia Civil demitiu 165 maus policiais. Há menos desvios na Susepe ou a corregedoria da polícia é mais efetiva?
Homero Diógenes Negrello – A nossa legislação é diferente. Há uma sindicância e, posteriormente, o processo é enviado para a Procuradoria-geral do Estado, que vai decidir sobre a demissão ou não.

ZH – Um agente denunciado por tortura na Pasc, no ano passado, foi transferido para São Gabriel. Lá, se envolveu em outro episódio de tortura e acabou denunciado pelo MP mais uma vez. Mesmo assim, continua trabalhando na penitenciária. Isso é normal?
Negrello – Num primeiro momento, adotou-se a providência de não mantê-lo no mesmo local de trabalho. Depois, em São Gabriel, segundo consta, o servidor é novamente suspeito. Nós solicitaremos outra vez a remoção dele para outro presídio.

ZH – A prática de remoção de agentes suspeitos é utilizada como forma de punição?
Negrello – Não. É um ato administrativo, que visa a preservar a coleta das provas e o próprio servidor.

ZH – Nada impede que o corregedor-geral da Susepe amanhã esteja lotado numa penitenciária, próximo dos presos, na companhia de algum colega que ele tenha investigado. A estrutura não torna a função de corregedor vulnerável?
Negrello – É uma função temporária. O agente pode exercê-la por um determinado período de tempo e retornar às atividades para as quais ele fez concurso. Na polícia, corregedores são policiais. Na Justiça, são juízes. Na Brigada, PMs. Na minha visão, a função é encarada com naturalidade.

ZH – O senhor responde a um processo criminal. De acordo com o MP, o senhor teria se omitido, quando era corregedor-geral, em 2005, diante de uma tortura em Charqueadas. O que houve?
Negrello – No dia 11 de janeiro de 2005 ocorreu um confronto entre presos (na Penitenciária Estadual de Charqueadas). Naquele dia, havia um corregedor naquele estabelecimento. Este corregedor apresentou um relatório. No dia 14, instaurei uma sindicância. Passados 40 ou 50 dias, recebi um documento da comissão de Execuções Criminais informando que, naquela data, teriam ocorrido abusos de servidores. Dois ou três dias depois, instaurei procedimento, que teve um curso normal até ser encaminhado à PGE, que concluiu pelo arquivamento. Uns seis meses depois fui surpreendido com a informação de que estava sendo denunciado porque teria me omitido naquele episódio. Tenho convicção e tranquilidade de que não haverá condenação.

ZH – O fato de o corregedor-geral responder a um processo causa algum constrangimento para o órgão?
Negrello – Olha, eu não vejo constrangimento para a corregedoria. Há presunção de inocência e, de minha parte, há convicção de inocência. A PGE se manifestou pelo arquivamento. Então, houve um julgamento e foi arquivado. Em hipótese alguma isso tira o respeito institucional que as pessoas devem ter pela corregedoria.

ZH – Recentemente, foram denunciadas irregularidades no Pio Buck, que resultaram inclusive na prisão em flagrante de um agente. Ocorreu alguma mudança no Pio Buck?
Negrello – Os servidores que de alguma forma estavam presentes foram afastados das funções no Pio Buck. Em relação ao fato, existe duas ou três sindicância apurando cada conduta.

ZH – Já têm resultado?
Negrello – O fato é relativamente recente.

ZH – Ocorreu em novembro.
Negrello – Se considerar o nosso prazo legal, é recente. Com a dificuldade de que o agente se encontra preso. Há uma dificuldade maior. Nós estamos sempre de olho no Pio Buck.

ZH – O que a corregedoria faz quando recebe uma denúncia envolvendo agentes?
Negrello – Instauramos procedimento. Em média, são instaurados entre 250 e 350 procedimentos por ano. Nos últimos cinco anos, 419 servidores sofreram algum tipo de punição.

ENTREVISTA - “Sei que haverá reação na categoria”
- Yeda Crusius, governadora. Ontem, a governadora Yeda Crusius falou com Zero Hora:

Zero Hora – Os crimes cometidos por agentes penitenciários, revelado por Zero Hora, lhe surpreendem?
Yeda Crusius – As reportagens vieram na hora certa por mostrarem o que é uma cadeia fechada. As mazelas que acontecem lá, a gente tem ouvido de alguma maneira.

ZH – Os crimes praticados por agentes, de uma maneira geral, refletem as distorções ao longo do tempo no quadro de funcionários. Como a senhora pretende resolver o problema?
Yeda – Com uma nova carreira. Ela inclui cursos de capacitação, remuneração adequada e um tratamento mais digno para os funcionários, que só poderão trabalhar oito horas por dia. Não é possível se deixar um agente 48 horas trabalhando, como acontece. Sei que haverá reação dentro da categoria com esta medida.

ZH – Muitos agentes acabaram estruturando suas vidas com base na escala de trabalho e nas horas extras. Ao mexer numa questão dessas, a senhora não teme uma rebelião nas cadeias?
Yeda – Temo a reação. Mas medo, eu não tenho. Tenho consciência de que tudo que é novo provoca uma revolução sem armas. Acredito que nada acontecerá porque estamos melhorando a vida do agente e do apenado, que há muito vivem um cotidiano cheio de problemas, como tem sido amplamente divulgado pela imprensa.

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