EDUARDO RODRIGUES
A difícil missão de recomeçar
O retorno de ex-apenados à sociedade praticamente não funciona no Brasil. O índice de reincidência no crime chega a 80%. Além de sair da cadeia sem formação educacional e profissional, o egresso do sistema prisional enfrenta a desconfiança da sociedade e a burocracia. Para mostrar essa realidade, o Diário Gaúcho acompanhou, por 30 dias, um presidiário, desde seus últimos dias de prisão até a conquista de um emprego. Nesta página, ZH mostra a história de José Roberto Justino Fraga, o Beto Boy, 39 anos, 18 deles na prisão.
Ao cruzar o portão da Penitenciária Estadual de Charqueadas (Pec), no começo de julho, José Roberto Justino Fraga renasceu pela segunda vez. Após cumprir 18 anos de reclusão em 13 casas prisionais do Estado (16 deles no regime fechado), Beto Boy, 39 anos, está em liberdade condicional desde o dia 2 de julho. Mora com a irmã e ensaia os primeiros passos de uma nova vida, bem diferente daquela que o levou para a cadeia pela primeira vez, aos 21 anos.
Em 1995, foi condenado a 31 anos, dois meses e 15 dias de reclusão por dois furtos, roubo, latrocínio (roubo com morte) e tráfico de drogas. Na cadeia, viu o inferno de dentro. O primeiro renascimento foi em abril de 2008, quando Beto saiu do hospital após ter sido esfaqueado por outro detento na cela de isolamento da Penitenciária Modulada Estadual de Charqueadas. No corpo, ficaram as marcas do período de confinamento. No tórax e nas costas, as oito cicatrizes das estocadas que quase o mataram. Beto não tem os dentes superiores, a maioria deles perdida na cadeia. O dedo indicador da mão direita entortou após ser prensado no torno da marcenaria da prisão. O indicador da mão esquerda tem a marca de uma facada.
Nos 18 anos de reclusão, ele foi ator e testemunha dos horrores que ocorrem nas cadeias do Estado. Viu rebeliões e o fogo destruir colchões. Ainda tem pesadelos com latidos de cães treinados para atacar. Entre abril de 1995 e julho de 2013, esteve em 13 casas prisionais de oito municípios. A primeira vez foi preso por furto. A última, por tráfico de drogas.
O Processo de Execução Criminal de Beto tem sete volumes e cerca de 1,6 mil páginas. O término das penas, acumuladas com duas fugas e reincidências, seria somente em 2025, mas, graças aos benefícios da lei e ao bom comportamento, saiu antes. Dos cinco crimes dos quais foi acusado, o pior deles foi o assalto, em maio de 1996, que resultou na morte de um comerciante em Novo Hamburgo. Beto Boy não foi o autor do disparo que matou Heitor Nunes de Moura, 43 anos, mas participou do assalto. Segundo a Susepe, o homem que deu o tiro está foragido. Em 2009, Beto foi acusado de tráfico de entorpecentes quando cumpria pena no semiaberto. Foi o segundo crime hediondo no histórico dele.
*A pedido de Beto Boy, ZH não revela a cidade onde ele mora
À disposição para o trabalho
Beto Boy saiu da prisão apenas com a roupa do corpo. Seguindo uma lei da cela, todo o preso que sai deixa o que tem para os que ficam. Não tinha nenhum documento nem dinheiro. Levava apenas o ofício do livramento condicional. Sentado em frente à penitenciária, manteve por alguns minutos a cabeça baixa, os braços cruzados e os olhos e ouvidos atentos. Esperava pelo Passat branco do marido de sua irmã se aproximar.
Para o diretor da Pec, Joel Führ, casos como o de Beto são exceção. Ao contrário da maioria dos presos, que saem em liberdade sem rumo ou apoio familiar, ele tem na irmã um porto seguro. Da família, Karen Fernandes Fraga, 32 anos, foi a que mais o visitou.
Beto esperou por uma hora e meia. Ao final, um longo abraço selou o reencontro dos irmãos. Um compromisso, em meio às lágrimas, foi firmado na madrugada.
– Agora é definitivo, 18 anos é uma vida. Se fizer alguma besteira de novo, eu é que vou te trazer até aqui – ameaçou Karen.
A mãe, a ex-mulher e as filhas também foram algumas vezes na cadeia. E é delas, Diéssica, 19 anos, e Dielen, 13 (enteada que considera como filha legítima), que Beto tem as melhores lembranças. Diéssica, que conheceu o pai na cadeia, se emociona ao falar da nova fase na vida dele.
– Agora, ele vai conhecer outra vida, uma vida melhor do que a que ele tinha antes.
Há quase dois meses, Beto voltou a ter a rotina de uma pessoa normal. Acorda cedo para trabalhar e, no final do dia, retorna para casa, feliz, após o dever cumprido. Trabalha em uma obra perto do local onde mora. É um dos primeiros a chegar e o último a sair do serviço. Já pediu até para trabalhar nos finais de semana em outras obras.
O medo de voltar para o inferno
Tudo ia bem na vida do recém-libertado Beto Boy até 14 de agosto, dia em que a irmã recebeu uma ligação da defensora pública Ana Pozzan. À noite, ao chegar em casa, cansado do trabalho, ele recebeu a pior notícia para um ex-apenado: em 2014, poderá voltar à prisão.
Em 9 de julho, uma semana depois de deixar a penitenciária, o Ministério Público recorreu da decisão do juiz Eduardo Almada, da Vara de Execuções Criminais, que havia concedido o livramento condicional. Para o juiz, Beto tinha direito à antecipação da liberdade, após cumprir o prazo mínimo da pena imposta pela Justiça.
A promotora de Justiça Ana Lúcia Cioccari Azevedo, que atua na Promotoria de Controle e de Execução Criminal de Porto Alegre, porém, recorreu da decisão. Isso porque o apenado é reincidente específico em crime de natureza hedionda e equiparado. O crime hediondo é o latrocínio, e o equiparado é o tráfico.
O caso de Beto será julgado por três desembargadores do Tribunal de Justiça. Conforme a promotora, isto deverá demorar um ano. Se a posição do juiz for derrotada, Beto voltará para o regime fechado. Se for mantida, a promotora explica que a Procuradoria-geral de Justiça do MP poderá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça.
Apesar da notícia de que pode voltar para a cadeia no ano que vem, Beto não pensa em desistir e insiste em dizer que está se esforçando para fazer tudo certo.
O HISTÓRICO - Beto Boy ficou 18 anos preso e está em liberdade condicional desde julho
- Preso: José Roberto Justino Fraga, o Beto Boy
- Condenação: 31 anos, dois meses e 15 dias por latrocínio (roubo com morte), tráfico, assalto e furtos, totalizando cinco crimes
- Término da pena: 2025
- Pena cumprida: 18 anos, dois meses e 25 dias (16 anos no regime fechado, e dois anos, dois meses e 15 dias no semiaberto)
- Primeira prisão: 8 de abril de 1995.
- Beto Boy fugiu duas vezes do semiaberto
- Liberdade condicional: 2 de julho. Beto tem de se apresentar periodicamente à Vara de Execuções Criminais e não pode sair da cidade
- Passou por 13 instituições penais do Estado: Presídio Central de Porto Alegre, Instituto Penal de São Leopoldo, Instituto Psiquiátrico Forense, Penitenciária Estadual de Charqueadas, Penitenciária Estadual do Jacuí, Presídio Estadual de São Gabriel, Presídio Estadual de Rio Pardo, Penitenciária Modulada de Uruguaiana, Penitenciária Modulada Estadual de Charqueadas, Instituto Penal de Charqueadas, Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, Instituto Penal de Viamão e Instituto Penal de Novo Hamburgo
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