MODELO EM DEBATE
O plano do governo gaúcho de terceirizar a construção de cadeias sem abrir mão da gestão dos presos reabre a discussão sobre o papel da iniciativa privada no sistema prisional
O governo do Estado decidiu incorporar o investimento privado no sistema prisional, mas só até um determinado ponto. Nos próximos dias, o Piratini finalizará o projeto econômico-financeiro de um novo modelo para viabilizar presídios. Três deles serão construídos pela iniciativa privada e, depois de concluídos, repassados ao poder público por meio de aluguel.
O objetivo é o mesmo que levou o governo anterior a propor uma parceria público-privada (PPP) para criar um complexo com 3 mil vagas em Canoas: resolver no curto prazo a superlotação das cadeias, em particular do Presídio Central de Porto Alegre, sem ter em caixa recursos suficientes para isso. Pela proposta da gestão Yeda Crusius (2006-2010), um consórcio privado construiria o presídio e ficaria responsável pela sua gestão por 27 anos, durante os quais receberia um valor mensal do Estado por apenado. O projeto gerou grande polêmica e foi torpedeado pelo então ministro da Justiça Tarso Genro, que assumiu o governo gaúcho, em 2011.
Passados dois anos, a solução apresentada por Tarso reedita o apelo a investidores, mas os exclui da administração do presídio – o principal motivo de crítica ao modelo anterior. Até abril, o Piratini deve lançar um edital para a construção de três presídios de 12 mil metros quadrados de área, cada um com 529 vagas para o regime fechado e 150 para o semiaberto. O custo unitário para a construção é de aproximadamente R$ 30 milhões.
No edital, o governo informará o valor máximo que aceitará pagar como aluguel ao construtor durante 15 anos de uso, após os quais o presídio será incorporado ao patrimônio público. Esse valor deverá ser algo superior a R$ 2 milhões por ano por presídio – contemplará a quantia gasta pelo empreendedor e mais uma remuneração pelo capital aplicado, superior à oferecida no mercado.
Vencerá a licitação quem cobrar menos pela locação, entregar o presídio mais rapidamente e oferecer melhores garantias financeiras. Na entrega da chave, o governo assumirá a cadeia e dará início aos desembolsos. Até lá, não terá gasto nada.
– O Estado encontrou uma alternativa que resolve o problema da pouca capacidade de investimento e da necessidade de rapidez, sem abrir mão de que o presídio seja público. É um modelo em que o Estado não bota nenhum recurso agora e no qual o investidor tem certeza de retorno – diz o secretário da Assessoria Superior do Governador, João Victor Domingues.
Depois de lançado o edital de licitação, o vencedor deve ser escolhido em um prazo de 60 dias. A expectativa é de início das obras para o segundo semestre, com prazo de oito a 10 meses para a conclusão. Sem percalços, a abertura ocorreria em maio de 2014. Segundo o Piratini, a obra iria se arrastar por até quatro anos, caso fosse feita pelo modelo tradicional, em decorrências de amarras burocráticas.
Guaíba vai ser sede de cadeia
A construção dos presídios será feita em áreas pertencentes ao Estado. Já é certo que um deles ficará em Guaíba. Para os outros dois, estão em cogitação Charqueadas, Viamão, Venâncio Aires e municípios da Grande Porto Alegre com muitos apenados e nenhuma penitenciária. Para garantir que o negócio seja interessante para a iniciativa privada, o governo estuda colocar os três presídios no mesmo pacote – o princípio é que o investidor reduziria os custos se assumisse as obras em conjunto.
As três casas erguidas por esse modelo, conhecido como arrendamento por ativos, terão capacidade para acolher 1,6 mil detentos do regime fechado trancafiados hoje no Central – a cadeia abriga 4 mil presos, o dobro da capacidade. Para atingir a meta de desocupar o caótico presídio até o fim de 2014, estão em andamento outros sete projetos, em seis cidades, com previsão de 3 mil novas vagas.
ITAMAR MELO
Visões distintas do papel do Estado
O modelo proposto pelo governo do Estado para combater o déficit de vagas nas cadeias reacende o debate sobre o papel que a iniciativa privada pode ter nos presídios. Para a atual administração do Piratini, não é aceitável repassar a gestão, como queria o governo Yeda Crusius.
– O governador não abre mão de que a administração da pena, a progressão de regime e a ressocialização sejam feitas pelo poder público. Um presídio em que se bota o preso a trabalhar com lucro para o investidor pode até virar uma maneira de obter mão de obra barata – diz o secretário João Victor Domingues.
Outro motivo de objeção à PPP era o custo. O Estado gasta hoje menos de R$ 1 mil ao mês por preso. No presídio privado de Canoas, o valor poderia chegar a R$ 2,7 mil. Ao final dos 27 anos de concessão, seriam cerca de R$ 2,8 bilhões de desembolso.
– Terceirizar o sistema prisional nessa monta é irresponsável – afirma o superintendente da Susepe, Gelson Treiesleben.
O ex-secretário de Planejamento e Gestão Mateus Bandeira, que comandou a montagem do modelo de PPP no governo Yeda, foi à Grã-Bretanha e à Espanha para conhecer presídios privatizados e deparou com experiências exitosas, com baixas taxas de reincidência no crime. Ele acredita que o Rio Grande do Sul perdeu uma oportunidade ao não testar esse modelo.
– Hoje poderíamos estar discutindo qual a qualidade desse sistema, se ele funciona e se estamos cuidando bem dos presos. Teríamos uma referência para comparar com as cadeias públicas – diz o ex-secretário.
Na avaliação de Bandeira, a proposta atual pode resolver a questão do financiamento de novos presídios, mas não mexe no modelo de presídio.
Para o promotor de Justiça Adriano Marmitt, a ideia de que a PPP significaria custo maior é enganosa. Ele diz que hoje o gasto do poder público é baixo porque os presos estão amontoados, sem receber serviços essenciais. Caso fosse cumprido o que a lei exige, o custo triplicaria. Marmitt, que estudou cadeias privatizadas dos Estados Unidos, afirma que uma das vantagens da PPP seria a agilidade. Se faltasse médico, por exemplo, o governo poderia exigir imediata substituição:
– O Estado passaria da posição de vidraça para a de atirador da pedra.
Uma iniciativa pioneira no Brasil
O modelo de presídio concedido à iniciativa privada que o Estado esteve prestes a adotar tornou-se realidade no Brasil há pouco mais de 40 dias. Em 18 de janeiro, Minas Gerais inaugurou em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, a primeira unidade de uma penitenciária construída e gerida por um consórcio de cinco empresas.
Com capacidade para 608 apenados, a prisão recebeu pouco mais de 300 até agora. Terá 3.040 detentos quando os cinco prédios estiverem concluídos, a um custo de R$ 280 milhões, assumido pelos investidores. O Estado paga R$ 2,7 mil por preso ao mês.
No presídio privado mineiro, até mesmo a segurança interna é feita pela concessionária – o governo mantém agentes em prontidão do lado de fora, para intervir em situação de emergência. Uma empresa foi contratada para auditar o trabalho feito pelo consórcio e municiar o Estado com os dados.
– Diariamente, há cinco a 10 verificadores independentes analisando 380 indicadores de desempenho previstos no contrato. Eles vão lá todos os dias, olham as celas, a iluminação e tudo o mais, para ver se o serviço está de acordo com o que foi pactuado – afirma Maria Cláudia Machado de Assis, gestora da PPP pelo governo mineiro.
Maria Cláudia afirma que ainda é cedo para fazer uma avaliação do modelo, mas observa que até o momento o serviço corre dentro do previsto, sem contratempos. Segundo ela, o custo é semelhante ao das penitenciárias públicas, com vantagens para o Estado:
As próximas unidades devem ser inauguradas até o próximo ano. O consórcio é responsável por financiamento, arquitetura, construção e gestão da penitenciária. Também se encarrega de uniformes e alimentação dos presos, que devem trabalhar e estudar. O contrato tem duração de 27 anos. Entre os 380 indicadores avaliados estão metas para impedimento de fugas e rebeliões. Se algum objetivo não é cumprido, o consórcio recebe repasse menor do que o previsto.
SUA SEGURANÇA | HUMBERTO TREZZI
Financiamento com ideologia
O governo Tarso Genro parece ter encontrado uma fórmula de financiar a construção de prisões, uma das maiores dores de cabeça de qualquer gestor, sem abrir mão da ideologia. No caso, fazendo jus a palavras que o governador disse recentemente:
– Esta é uma questão constitucional: a custódia dos detentos é responsabilidade do Estado. Qualquer empresa que entra em um negócio visa o lucro, e o sistema prisional não serve para isso.
Por partes: primeiro, o elogio à iniciativa. A ideia de que a iniciativa privada construa de forma acelerada, desburocratizada e com lucro três prisões para sepultar o obsoleto Presídio Central é uma boa saída, para empresários e o governo. Principalmente para o governante, sempre às voltas com fraquezas de caixa, na hora de garantir obras.
Agora, a dúvida: qual o pecado se a iniciativa privada também gerenciasse o presídio? Assim acontece em muitos países (como os EUA) e funciona. Sempre é bom lembrar que, numa empresa particular, demissão de gente envolvida em irregularidades costuma ser imediata. Já nos governos... não faltam casos de servidores que continuam empregados por décadas, mesmo após várias investigações concluírem que eles cometeram crimes.
Outra vantagem seria a cobrança de desempenho dos presos que trabalham. Algo que, convenhamos, não tem ocorrido nos presídios estatais: é comum detentos que deveriam estar trabalhando serem surpreendidos assaltando nas ruas. É hora de pensar a respeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário