BNC AMAZONAS 23 de janeiro de 2017
Euro Bento Maciel Filho *
Não é preciso ser muito perspicaz para se perceber que o nosso sistema prisional – falido e decrépito, há décadas – está totalmente dominado por diversas facções criminosas, as quais surgiram dentro do próprio sistema e têm como alicerce a flagrante inoperância do Estado na administração e gestão das nossas cadeias.
Da mesma forma, também não demanda muita inteligência reconhecer que a efetiva solução do problema não passa pela adoção de uma fórmula mágica qualquer, mas, sim, pressupõe a aplicação de um conjunto complexo de medidas e proposições, o qual só poderá ser implementado se houver a efetiva participação (e atuação) conjunta de todos os poderes da nação.
Positivamente, aquele tradicional “jogo de empurra” – comum em momentos de crise – não ajuda em nada. Muito pelo contrário!
Dentro desse contexto, causou certa perplexidade a recente manifestação do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), segundo a qual a crise do sistema penitenciário “não diz respeito ao Judiciário. Esta crise diz respeito ao poder Executivo, à questão dos estados, à gestão dos presídios”.
Para ele, “gestão dos presididos não é assunto nosso”, ou seja, não é questão atinente às funções da magistratura.
Ora, com todo respeito, tal assertiva não pode ser aceita. Afinal, em que pese ser mesmo verdade que os magistrados não têm a função de “administrar” e “gerir” presídios, é preciso deixar claro que a crise do sistema prisional não se resume, apenas, às falhas de “gestão” das cadeias.
O poder Judiciário tem, sem dúvida, grande parcela de culpa pelas atuais mazelas que afligem nossas penitenciárias.
Ao cabo de contas, se é verdade que, de um lado, o Estado tem se mostrado incapaz para administrar o sistema carcerário, também é correto afirmar que, de outro, a maioria dos juízes ainda faz vistas grossas às diversas medidas alternativas à prisão previstas em lei e, com isso, continua insistindo no famigerado entendimento de que a prisão (ainda) é a melhor saída para se resolver a questão da criminalidade.
Não à toa, o Brasil ostenta a (nada lisonjeira) quarta maior população carcerária do planeta, com mais de 600 mil presos. E, desse total, 40% é de presos provisórios, ou seja, cidadãos que, apesar de acusados da prática de crimes, ainda não foram punidos de forma definitiva e, por isso, poderão até ser absolvidos ao final do processo.
Isto é, sem aqui adentrar no mérito da situação fática de cada um, pode-se afirmar que mais de 200 mil presos que habitam nossas cadeias poderiam estar respondendo ao processo em liberdade, na exata medida em que ainda não possuem pena definitiva.
No Brasil, diferentemente do que se pode pensar – pois muitos insistem em apregoar que aqui ninguém é punido –, prende-se muito e, o que é ainda mais grave, prende-se mal!
A prisão provisória é medida de absoluta exceção, que deve ser adotada com cautela, sobretudo quando o acusado é primário e não ostenta antecedentes criminais. Porém, o que se vê na prática é justamente o contrário, haja vista que primeiro se prende para só depois analisar a situação fática de cada um.
Tanto isso é verdade que, mesmo após a implementação das audiências de custódia na maior parte do país, dados recentes divulgados pelo CNJ revelaram que em 18 estados brasileiros os juízes decidem prender mais do que soltar.
De fato, de acordo com os números apresentados, foram realizadas 174.242 audiências de custódia no Brasil ao longo de 2016 (até dezembro), sendo certo que em 93.734 situações (ou seja, 53,8% do total) o acusado teve a prisão preventiva decretada e, na sequência, foi encaminhado à alguma unidade prisional.
É até possível que, à luz do caso concreto, uma parcela daquelas prisões tenha realmente se apresentado necessária.
Contudo, partindo do princípio de que a segregação provisória de quem quer que seja deve ficar restrita a situações absolutamente excepcionais e, ainda, que a nossa legislação processual penal prevê diversas medidas alternativas à prisão (art. 319, Código de Processo Penal), justamente para evitar o uso desmedido da prisão preventiva, é forçoso reconhecer que, diante dos números apresentados pelo CNJ, a segregação cautelar vem sendo exageradamente adotada, pois, ao invés de ser a última alternativa, tem sido adotada com primazia às demais, de forma quase banalizada.
Eis aí, portanto, a grande “contribuição” do poder Judiciário para a crise do sistema prisional que hoje vivenciamos. Sem dúvida, tem faltado critério e bom senso aos nossos juízes no que diz respeito ao uso desmedido da prisão provisória.
De mais a mais, cumpre aqui lembrar que, segundo a lei de execuções penais, aos membros do poder Judiciário também incumbe fiscalizar as cadeias, zelando pela eficiência e funcionamento correto do sistema.
Vale ressaltar que, em casos extremos, faculta-se aos magistrados “interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta lei” (artigo 66, inc. VIII, da LEP).
Ora, se assim o é, onde, afinal, estão os juízes que não interditaram os presídios de Pedrinhas (MA), Compaj (AM), Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (RR) e tantos outros?
Se a responsabilidade é daquele que administra mal, também o é daquele que ou não fiscaliza ou se cala diante das mazelas que presencia.
Fica claro, portanto, que a responsabilidade pelo caos que impera em nosso sistema carcerário não é “apenas” do poder Executivo, mas é, em boa parte, também do Poder Judiciário, seja porque os juízes prendem muito (e mal!) – o que intumesce, desnecessariamente, as cadeias –, seja porque não fiscalizam ou, então, “fazem de conta” que não enxergam as péssimas condições da imensa maioria das nossas cadeias.
Assim, uma vez esclarecido que todos os poderes da Nação, sem exceção, têm sua parcela de “culpa” por tudo isso que está ocorrendo, resta ao cidadão de bem aguardar que, no tocante à busca de soluções e medidas efetivas para a pacificação do sistema prisional, todos se unam em torno de um mesmo e único objetivo, sem vaidades ou “jogo de empurra”.
Do contrário, o Estado brasileiro permanecerá “enxugando gelo”, de tal forma que tragédias como as recentemente vistas continuarão ocorrendo, cada vez mais violentas e frequentes.
* O autor é advogado criminalista, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados
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