ZERO HORA 22 de junho de 2015 | N° 18202
DAVID COIMBRA
Malcolm X, falei que escreveria mais sobre Malcolm X, e vou, e começo contando que Malcolm X, antes de se tornar ícone mundial do movimento negro, foi gigolô amador, assaltante profissional, traficante de drogas por conveniência e adicto convicto. Era líder de uma ativa quadrilha de assaltos a residências, aqui, em Boston. Um dia, porém, foi preso, julgado e condenado a uma pena pesada: 10 anos de reclusão.
Mas, para sua sorte, e para sorte da humanidade, Malcolm acabou sendo enviado para uma colônia penal que não havia sido construída apenas para ser penal, e sim para ser correcional.
Bem. Fazia já algum tempo que ele constatara que homens lidos se expressavam e pensavam melhor, e os invejava por isso. Assim, decidiu que se transformaria, ele também, em leitor de livros. O que era factível: a penitenciária dispunha de uma grande biblioteca, doada por um milionário filantropo. O problema era que, quando entrava nos livros, Malcolm simplesmente não entendia o que estava escrito. Seu vocabulário se limitava à gíria dos negros manemolentes do Harlem e de Roxbury.
O que ele fez, então, a fim de melhorar a interpretação de texto, é algo extraordinário. Malcolm pediu um dicionário de inglês, um caderno e uma caneta à direção da penitenciária. E passou a copiar o dicionário, página por página, palavra por palavra, até os sinais. Em sua autobiografia, ele conta sobre o começo desse processo:
“Uma coisa engraçada: neste momento, a palavra que me surge à mente, daquela primeira página do dicionário, é aardvark, uma espécie de porco africano”.
Sabe que sempre tive vontade de fazer isso? Copiar e, por consequência, compreender todo o dicionário seria como saber o significado de tudo que há no mundo. Confesso, até, que cheguei a percorrer o A, mas, como não sou um Malcolm, não copiei todos os verbetes, só os que não conhecia. Como “aférese”, palavra bem linda, toda proparoxítona e requintada. Palavra de tese científica, de arrazoado de causídico, de relatório de pesquisa de sociólogo socialista, de artigo de psicanalista que gosta de escrever “empoderamento”. Aférese, por favor, é muito melhor do que empoderamento! Pena que aférese signifique o contrário da sua aparência. Aférese é a essência do coloquialismo. “Tá”, por exemplo, é uma aférese. Que decepção.
Mas o que importa é que, dentro do presídio, Malcolm teve acesso aos livros e à instrução de professores da Harvard e da Boston University, que davam palestras e cursos aos detentos. O presídio, para ele, foi um local de regeneração, não de degradação. No presídio, ele se converteu de bandido vulgar em herói de um povo.
Em um trecho de sua autobiografia, talvez sem perceber, Malcolm X dá um testemunho emocionante do poder do conhecimento sobre a alma do homem. Ele discorre a respeito de seus anos na prisão e conta que, entre as correspondências que escrevia e a leitura de livros, “os meses foram passando sem que sequer pensasse que estava preso”. E arrematou com uma frase que diz tudo o que há a dizer: “Para dizer a verdade, até aquele momento eu nunca fora tão verdadeiramente livre”.
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