domingo, 24 de maio de 2015

PRESÍDIOS, A ESCOLA DO CRIME

REVISTA VEJA Edição 2427 de 27 de maio de 2015


Por: Kalleo Coura


Pesquisa de VEJA comprova que os bandidos no Brasil saem da cadeia muito mais perigosos do que quando entraram: o estelionatário vira traficante; o contrabandista, sequestrador; e o ladrão, assassino — como ocorreu com o menor H.A.S., que passou treze vezes por instituições do Estado antes de ser acusado de matar a facadas o médico Jaime Gold, no Rio



O médico Jaime Gold, de 56 anos, pedalava na Lagoa Rodrigo de Freitas no dia 19 quando, segundo testemunhas, foi esfaqueado pelo menor H.A.S., de 16 anos. Ele não resistiu aos ferimentos. O autor do ataque já havia sido apreendido três vezes antes disso(José Lucena/FuturaPress/Folhapress)

(VEJA.com/VEJA)

Na manhã de 26 de novembro de 1989, Julio Cesar Guedes de Moraes, de 18 anos, aproximou-se do Porsche azul parado na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta e, arma em punho, mandou que o motorista lhe entregasse o Rolex de ouro que levava no pulso. A vítima, um executivo, passou-lhe o relógio, mas, assim que o bandido se afastou, gritou: "Pega ladrão!". O ladrão chegou a atirar, mas a polícia apareceu e o prendeu. Moraes passou oito meses na cadeia até conseguir fugir. Voltou a roubar, assaltou bancos e acabou preso novamente. Em 1993, quando dividia pela quarta vez uma cela abarrotada de criminosos de todos os calibres, entrou para uma facção criminosa recém-criada. Fugiu, foi preso outra vez e, em 1995, assassinou três detentos a golpes de faca junto com catorze comparsas. Em 2002, depois de uma sangrenta troca de comando na facção, Julio de Moraes, o ladrão que havia sido preso pela primeira vez ao tentar roubar um relógio, já tinha outro nome e outro status: era Julinho Carambola, o segundo homem do PCC, a facção criminosa que domina os presídios de São Paulo e à qual se atribui a morte de centenas de homens, dentro e fora das cadeias.

A transformação de Moraes em Julio Carambola é um exemplo extremo de como o sistema penitenciário brasileiro é capaz de piorar os que nele desembarcam. Durante dois meses, VEJA analisou os 1 306 processos de execução penal dos criminosos mais perigosos de São Paulo, encarcerados na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau e na Penitenciária 1 de Avaré. De cada dez detentos, nove cometeram crimes repetidas vezes - os chamados reincidentes. O que a análise da sequência e da natureza desses delitos revela é impressionante: três em cada quatro reincidentes cometeram crimes mais graves a cada prisão. Em outras palavras, o que o levantamento indica é que um bandido quase sempre sai da cadeia mais perigoso do que quando entrou. Que um estelionatário vira um traficante; um contrabandista, um sequestrador; um ladrão, um assassino.

Para analisar essa evolução, a reportagem se baseou em três critérios: crimes contra a vida são mais graves que aqueles contra o patrimônio; crimes com penas mais altas são mais graves que aqueles com penas menores; e, em caso de prisões pelo mesmo crime, uma diferença de escala também torna o crime mais grave - uma prisão por posse de 2 quilos de maconha foi considerada "mais grave" que outra por posse de 200 gramas, por exemplo. No Brasil, a letalidade de um criminoso avança quanto mais ele passa por instituições cuja finalidade é contê-la. E esse processo pode ter início bem antes da maioridade, como mostra a história do adolescente H.A.S.

 H.A.S inaugurou sua ficha ficha corrida quatro dias depois de completar 12 anos. Desde então, foi apreendido 13 vezes e chegou a ficar quarenta dias sob a guarda do Estado em centros conhecidos como de "socioeducação". Entre apreensões e solturas, colecionou 17 ocorrências criminais, sendo a seguinte mais grave que a anterior. Na primeira, desarmado, roubou um celular e 10 reais. Na terceira, já ameaçou a vítima com um faca - levou dela outro celular e 350 reais. Seguiram-se algumas apreensões por posse de drogas, danos à propriedade e mais roubos. No último dia 19, H.A.S. e um comparsa seguiram numa bicicleta o médico Jaime Gold, de 56 anos, que pedalava na ciclovia da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, eles teriam se aproximado do médico, esfaqueando-o; como ele não desmontasse imediatamente, golpearam-no quatro vezes. Gold caiu, sangrando e segurando o abdômen, vísceras á mostra. H.A.S.e o comparsa fugiram levando sua bicicleta, carteira e celular. Gold morreu na manhã seguinte.

Os centros de "socioeducação" como aqueles em que H.A.S.ficou internado são reproduções em menor escala das prisões brasileiras; comportam infratores de todos os níveis, estão smpre superlotados e abrigam facções criminosas violentas. Essa última característica é, para especialistas ouvidos por Veja, um dos principais motivos a explicar o fato de as cadeias brasileiras terem se transformado em máquinas de aperfeiçoar bandidos.

No Brasil, que possui a quarta maior população carcerária di mundo, 581 mil detentos se amontoam num espaço que caberiam 348 mil - é mais ou menos como colocar 8 pessoas dentro de um fusca e deixá-las lá por anos a fio. Um exemplo extremo dessa situação é a penitenciária de segurança máxima Romeu Gonçalves de Abrantes, em João Pessoa. Uma inspeção feita há três anos encontrou celas ocupadas uns em cima dos outros, sem cama e com poças de urina e fezes espalhadas pelo chão. Na cela da "disciplina", onde estão os presos ameaçados de morte ou que cometeram alguma falta dentro da cadeia, os detentos vivem nus, sem colchão, lençol nem banho. Mesmo em São Paulo, o estado mais rico do país e também o que mais prende, 60% dos encarcerados relatam que falta até água para beber.

E é neste cenário que viceja o poder de atração das facções criminosas. Para um condenado no Brasil, aliar-se a um grupo de bandidos que detém o domínio da cadeia pode ser o único caminho para uma vida um pouco menos desgraçada. Dependendo do lugar, ser ou não membro de uma facção pode significar a diferença entre dormir no chão e no colchão, comer e passar fome - em última análise, viver e morrer. "Com a ausência do Estado, o poder paralelo toma conta. Na falta de um tratamento adequado, os presos são socializados pelo próprio crime e passam a partilhar as crenças e os valores do grupo que lhe estendeu a mão ali dentro", diz o especialista em segurança pública Alexandre Rocha. Na cadeias, os integrantes do PCC raramente são incomodados por outros presos e contam com a ajuda de cestas básicas para a família. Assim, o criminoso amador que entra para a facção ganha regalias e proteção, além de aprofundar sua intimidade com o crime e com os criminosos profissionais.

Uma série de estudos conduzidos pelo criminologista americano David Berue no Estado de Mariland mostrou como as condições das cadeias interferem no futuro dos presos. Ele provou que os detentos que passaram pelas piores instituições do estado tiveram 40% de mais condenações do que seus colegas de perfil similar que estiveram em penitenciárias mais bem administradas. "Ambientes mais limpos e organizados, onde os prisioneiros são tratados com profissionalismo pelo corpo técnico, fazem com que eles se engajem mais nos programas de recuperação", diz Bieri.

Desde o século XVIII, o mundo civilizado desvencilhou a ideia da punição como desejo de vingança. Da parte do Estado, preconizou o criminologista italiano Cesare Beccaria (1738-1794), a punição deve limitar-se à sua função social - de desestimular a reincidência, por meio de penas claras, precisas e justas. O que impede o delito, escreveu Beccaria, não é a crueldade das punições. "A maior possibilidade de ser preso provoca um efeito dissuasivo muito maior do que qualquer aumento de pena, por exemplo", afirma o americano Daniel Nagin, ganhador do prêmio Estocolmo de Criminologia. Nesse sentido, a audácia e a letalidade crescentes dos bandidos no Brasil não surpreendem. "A taxa de resolução de crimes no país é muito baixa comparada à de outros países. É preciso aumentar a eficácia das investigações e da polícia", afirma Nagin.

O criminoso brasileiro sabe que, se não for preso em flagrante, dificilmente irá para a cadeia; se for, cumprirá pena baixa; se se tudo der errado e a punição for severa, será grande a chance de escapar. Uma pesquisa feita no Rio de Janeiro ajuda a dimensionar o problema: dos 3.167 assassinatos cometidos em 2005 em que não houve prisão em flagrante, apenas 3,5% chegaram à justiça quatro anos depois. Nos Estados Unidos, o assassino é condenado em 65% dos casos. Na França e no Reino Unido, essa taxa ultrapassa os 80%.

Ao jogar seus presos em masmorras medievais, o Brasil aumenta a probabilidade de despejar nas ruas bandidos mais perigosos, maus organizados e mais dispostos a roubar, matar e sequestrar. Só em São Paulo, mais de 110 mil criminosos retornam ao convívio social a cada ano - boa parte deles diplomada com louvor.

COM REPORTAGEM DE LUCIANO PÁDUA E LESLIE LEITÃO


 DO ROUBO AO ASSASSINATO..

DE LADRÃO A CHEFE DE QUADRILHA

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