ACERVO O GLOBO
Publicado: 25/01/17 - 14h 46min
Atualizado: 03/01/18 - 21h 44min
Rebeliões e massacres em presídios: 10 casos que chocaram o Brasil e o mundo. Na Ilha Anchieta (SP) ocorreu 1º grande motim, em 1952. Com superlotação e ação de facções, cadeias registram índice anual de 58 mortes violentas por 100 mil presos
Fabio Ponso*
Janeiro de 2017. Nos primeiros 15 dias do ano, três violentas rebeliões em penitenciárias do Norte e do Nordeste do Brasil, motivadas pela guerra entre facções criminosas rivais, deixaram 119 mortos, o equivalente a 30% de todas as mortes ocorridas em presídios no ano anterior. Os números alarmantes e a crueldade das execuções, com decapitações e esquartejamentos, chamaram a atenção do mundo inteiro.
Na tarde do dia 1º, um motim de 12 horas, com confronto entre presos de grupos rivais, no Complexo penitenciário Anísio Jobim (Compaj), e Unidade Prisional do Puraquequara, em Manaus, terminou com 60 mortos. Cinco dias depois, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, o conflito terminou com 33 mortos em menos de uma hora, numa provável retaliação da facção ligada às vítimas do massacre ocorrido em Manaus. Por fim, no dia 14, teve início outra guerra, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, que se estendeu por mais de uma semana e deixou 26 detentos mortos. Os massacres brutais ocorridos em sequência entraram para a lista dos dez maiores da história do sistema prisional brasileiro e colocaram mais uma vez em evidência as mazelas do sistema e as dificuldades do Estado em contornar uma crise que vem de longa data.
Historicamente, as penitenciárias brasileiras apresentam condições precárias de infraestrutura e segurança, além de programas de reabilitação insuficientes. Assoladas pela superlotação, oferecem condições de vida degradantes aos detentos. Com isso, tornaram-se alvo fácil para a ação violenta de grupos criminosos ligados ao tráfico de drogas, que dizem defender os interesses dos presos, e tentam dominar o sistema prisional. Um relatório elaborado por setores dos serviços de Inteligência do governo federal, e divulgado pelo GLOBO em 7 de janeiro de 2017, sustenta que as cadeias brasileiras abrigariam cerca de 80 facções criminosas, quase todas dividindo sociedade com o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa do país, baseada em São Paulo, e o carioca Comando Vermelho (CV), as únicas facções com atuação nacional.
De acordo levantamento divulgado em abril de 2016 pelo Ministério da Justiça, com dados relativos a dezembro de 2014, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 622,2 mil presos, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. O estudo apontou ainda que, de 2004 a 2014, a população prisional subiu 85% (de 336,3 mil para 622,2 mil), sendo que entre 2013 e 2014 houve um aumento de 40.695 detentos, uma média de 113 encarceramentos por dia. Já o índice de detentos por 100 mil habitantes passou de 288,6 para 306,2 no mesmo período. A taxa é mais que o dobro da média mundial, de 144 por 100 mil habitantes. A quantidade de vagas também subiu, de 341.253 para 371.884, mas continua insuficiente.
A superlotação é realidade em todos os estados brasileiros. Rondônia, Amazonas e Tocantins têm as piores situações, com taxas de ocupação superiores a 250%. Ou seja, abrigam mais de três pessoas a cada vaga disponível. No Rio, o índice é de 143%, pouco abaixo da média nacional, de 167%. O Espírito Santo tem a situação menos desfavorável, com taxa de 123%.
O levantamento apontou ainda que a população de presos apresenta índices de doenças como Aids e tuberculose muitos superiores aos da população em geral. Por sua vez, são tímidos os índices de presos estudando (13%) e trabalhando (12%). Já a taxa de mortes violentas é alarmante: em 2016, o índice foi de 58 por 100 mil ocupantes do sistema prisional, o que equivale ao dobro dos óbitos por causas externas verificados no país, de 29 por 100 mil habitantes.
Todos esses números, além do poder paralelo das facções criminosas, indicam a ineficácia do Estado na gestão do sistema prisional, como reforça Renato De Vitto, que apresentou o estudo em abril de 2016, na condição de diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen):
— Há uma cobrança social de que prendamos mais. Para fazer discurso, pode ser um expediente. Mas se olharmos do ponto de vista de política pública, veremos que essa fórmula não para em pé — afirma ele.
Em 2015, o relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Tortura, Juan Méndez, visitou vários presídios brasileiros e chamou a atenção da sociedade para a prática recorrente de tortura nesses locais. Disse ainda que esses crimes — uma herança da ditadura militar — não são investigados e ficam impunes. Em seu relatório, encaminhado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, também alertou para a superlotação das cadeias, para o tratamento cruel e desumano a que os presos são submetidos e para a ausência de políticas eficazes de ressocialização.
A seguir, o Acervo O GLOBO destaca dez rebeliões prisionais que provocaram o maior número de mortes no Brasil, conforme noticiadas nas páginas do jornal:
1) ILHA ANCHIETA (SP). Em 20 de junho de 1952, cerca de 300 presos amotinados atacaram a guarda de surpresa e tomaram as instalações da colônia correcional que existia na Ilha Anchieta, litoral norte de São Paulo (conhecida como a “Alcatraz brasileira”), iniciando uma fuga em massa. Durante as 16 horas do levante, os detentos incendiaram o presídio, roubaram armas e munição e travaram intenso conflito com forças policiais, que terminou com 16 mortos, segundo dados oficiais da época. Alguns estudos, como o da Associação Pró-Resgate Histórico da Ilha Anchieta, apontam, no entanto, que o número de mortos teria passado de cem, incluindo presos que naufragaram quando tentavam fugir em pequenas embarcações. Três dias após a rebelião, O GLOBO já noticiava o registro de 74 mortos, destacando a tentativa das autoridades policiais do local de ocultar a gravidade dos acontecimentos. Na ocasião, foi montada uma grande operação, envolvendo as Forças Armadas, para recapturar os presos que chegaram ao continente em cidades como Ubatuba, Caraguatatuba e Paraty. Fontes não oficiais indicam que, de um total de mais de cem fugitivos, seis nunca foram recapturados.
2) CARANDIRU (SP). Em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos após a Polícia Militar entrar na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, para conter uma rebelião. O massacre é considerado a maior tragédia já ocorrida numa penitenciária brasileira, com 111 mortos. Na ocasião, o Carandiru era o maior complexo penitenciário da América Latina, com 7.500 presos (mais que o dobro da sua capacidade). Após o início de uma briga entre detentos de dois grupos rivais, que fugiu ao controle, a PM foi autorizada a entrar no local pelo então secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, e pelo ex-governador paulista Luiz Antônio Fleury Filho. Participaram da invasão 330 homens, 25 cavalos e 13 cães, sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães, numa ação que durou cerca de meia hora. A maioria dos detentos do Pavilhão 9 morreu com tiros na cabeça e os corpos tinham marcas de facadas e mordidas dos cães. O massacre ocorreu às vésperas da eleição para a prefeitura de São Paulo, em 1992. O vice-governador Aloysio Nunes Ferreira (então do PMDB) era o candidato apoiado por Fleury Filho. No dia da chacina, as autoridades divulgaram a morte de apenas oito presos. Somente no dia seguinte, pouco antes do fechamento das urnas, foi divulgado o número definitivo.
O episódio chocou o país e repercutiu no exterior. Os mais importantes jornais da Europa e dos EUA deram destaque à tragédia. Por sua vez, diversas organizações de direitos humanos cobraram rigor e agilidade nas investigações. No Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Igreja formaram uma comissão para investigar a chacina. Em 2001, o coronel Ubiratan foi condenado a 632 anos de prisão em júri popular pela morte de 102 dos 111 presos. Ele recorreu da pena em liberdade e, em fevereiro de 2006, os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo o inocentaram, acolhendo o argumento da defesa, de que sua ação se deu no cumprimento do dever. Em 10 de setembro do mesmo ano, o coronel foi encontrado morto com um tiro, em seu apartamento, num crime que continua sem solução. Setenta e quatro policiais também chegaram a ser considerados culpados em primeira instância pela morte de 77 das vítimas (os outros 34 teriam sido mortos por detentos), mas, em setembro de 2016, após identificar problemas como a falta de individualização de conduta dos acusados, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou os cinco julgamentos em que os agentes foram condenados. Dos três desembargadores que votaram pela anulação, o relator da ação, Ivan Sartori, defendeu ainda a absolvição de todos os PMs, alegando que “não houve massacre, mas, sim, uma contenção necessária à imposição da ordem e da disciplina”. Sartori, no entanto, foi voto vencido: em abril de 2017, por quatro votos a um, os desembargadores do TJSP votaram por um novo julgamento dos acusados.
3) SÃO PAULO. Em 18 de fevereiro de 2001, a maior rebelião da História do país tomou conta de 27 presídios e dois distritos policiais de São Paulo, envolvendo 27.300 presos e fazendo 13 mil reféns, entre eles milhares de familiares de detentos que realizavam a visita dominical. Após ação do PM, o motim terminou cerca de 24 horas depois, com 16 presos mortos e dezenas de feridos, incluindo uma criança de 4 anos. Planejado pelo PCC, o motim contou com a utilização de telefones celulares, armas de fogo e granadas de mão, numa clara demonstração de força do poder paralelo. As imagens do levante foram transmitidas para o mundo inteiro e noticiadas pelos principais jornais. Em sua edição do dia seguinte, o “Washington Post” afirmaria que cenas como aquelas eram comuns “nas indecentemente superlotadas e violentas prisões brasileiras”. Na Itália, o “Il Corriere della Sera” destacou que “o homicídio e a revolta são o pão cotidiano nas lúgubres penitenciárias brasileiras”.
4) URSO BRANCO (RO). Em 1º de janeiro de 2002, 27 detentos foram mortos na Casa de Detenção Doutor José Mário Alves da Silva, conhecida como Urso Branco, em Porto Velho. A maior e mais sangrenta rebelião já registrada no local começou após uma mudança nas regras de circulação, que tirou os presos ameaçados de morte de celas seguras e os mandou aos pavilhões onde estavam seus inimigos. Os presos que ficavam no chamado “Seguro” eram considerados traidores, por delatarem planos de fuga. Com sua transferência, foram imediatamente tomados como reféns e assassinados de modo cruel. A chacina teve repercussão mundial e chamou a atenção da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que passou a acompanhar a situação no Urso Branco, através de visitas bimestrais, e chegou a ameaçar o governo brasileiro com possíveis sanções.
5) BENFICA (RJ). Em 29 de maio de 2004, criminosos atacaram a recém-inaugurada Casa de Custódia de Benfica, no Rio, jogando um explosivo no portão principal da cadeia e possibilitando a fuga de 14 dos cerca de 800 detentos. Os presos que não conseguiram escapar iniciaram uma rebelião, tomando 26 agentes penitenciários como reféns. O motim durou 62 horas e terminou com a morte de 30 presidiários e de um agente penitenciário. Um pastor evangélico conduziu a negociação que encerrou o conflito. O massacre foi o maior já registrado num presídio do estado. Após a rebelião, 62 presos ameaçados de morte por rivais ou acusados de terem comandado a chacina foram transferidos para outros presídios.
6) PEDRINHAS (MA). Nos dias 8 e 9 de novembro de 2010, um anexo do Presídio São Luís 2, no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, foi palco do maior motim já registrado no estado. A rebelião durou cerca de 30 horas e deixou 18 presos mortos. Os detentos reclamavam das condições do presídio, reivindicando a redução da superlotação e o fornecimento de alimentos e água com maior qualidade. Pediam também a revisão de seus processos e transferências de presídio. A rebelião começou por descuido de um agente penitenciário, que teve a arma roubada pelos detentos. Cinco agentes penitenciários chegaram a ser feitos reféns, mas foram libertados. As mortes foram causadas por confrontos entre facções criminosas rivais, e a violência dentro do presídio ganhou destaque nacional.
7) CEARÁ. Entre 21 e 23 de maio de 2016, diversas rebeliões foram registradas em presídios cearenses, terminando com a morte de 14 presos. De acordo com a Secretaria da Justiça do estado, os assassinatos foram decorrentes de conflitos entre os internos. As rebeliões se iniciaram durante a greve dos agentes penitenciários, e a motivação principal dos levantes teria sido a suspensão das visitas nas unidades prisionais. Os detentos depredaram vários presídios, e quando os agentes penitenciários retornaram às atividades, a situação já estava fora de controle, sendo necessária a intervenção de forças policiais para conter as rebeliões.
8) COMPAJ (AM). Em 1º de janeiro de 2017, uma guerra entre facções deixou 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) e quatro na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP), em Manaus (AM), no que foi considerado o massacre mais violento da história do sistema prisional brasileiro desde a chacina do Carandiru, em 1992. A rebelião ocorreu no primeiro dia do ano e começou após uma fuga de detentos no Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), unidade que fica ao lado do Compaj. O conflito, que durou cerca de 12 horas (do horário de visita, na tarde do dia 1º, até a manhã do dia seguinte), vitimou detentos ligados ao PCC e condenados por estupro. As execuções foram praticadas por presos rivais, ligados à Família do Norte (FDN), aliada do Comando Vermelho. Durante o motim, ao menos 12 agentes penitenciários e mais de 70 presos foram feitos reféns. Seis deles foram decapitados e tiveram seus corpos arremessados por cima dos muros do complexo prisional. Outros foram esquartejados. Mais de cem detentos do Compaj, que se apoderaram de armas, teriam fugido do presídio.
Segundo a socióloga Camila Nunes, que investiga as organizações criminosas, o PCC e o CV romperam um pacto que mantinham para a compra de drogas e armas em regiões de fronteira em meados de 2016, e o fim da aliança explica em grande parte o quadro de instabilidade no sistema prisional brasileiro evidenciado no início de 2017, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, onde há um equilíbrio de poder entre os dois grupos dentro e fora das prisões. O massacre foi destaque na imprensa mundial e motivou declarações do Papa Francisco, que pediu orações pelos mortos e suas famílias, além de condições mais humanas nos presídios. O presidente da República, Michel Temer, classificou o episódio como um “acidente pavoroso” e declarou não ter havido “responsabilidade objetiva, clara e definida dos agentes estatais”, uma vez que o Compaj era privatizado. Mesmo assim, dias depois, o governo federal anunciou a liberação de verbas, além de medidas de segurança, como a intervenção das Forças Armadas, para tentar contornar a crise no sistema penitenciário.
9) MONTE CRISTO (RR). Na madrugada de 6 de janeiro de 2017, cinco dias depois do massacre em Manaus, 33 presos foram mortos na Penitenciária Agrícola do Monte Cristo, na zona rural de Boa Vista. O massacre foi um dos mais violentos da série ocorrida nos presídios brasileiros em janeiro de 2017. Além de serem decapitados e esquartejados, alguns corpos tiveram os olhos e o coração arrancados. Segundo grande parte da imprensa, a matança foi uma resposta do PCC à rebelião comandada pela FDN no Amazonas. De acordo com especialistas, um confronto no mesmo local entre o PCC e a FDN — que deixou 11 mortos, em outubro de 2016, já evidenciava a consolidação do PCC na região. A Secretaria de Justiça e Cidadania de Roraima descartou, no entanto, a possibilidade de as mortes estarem associadas à guerra entre as organizações criminosas. O massacre estaria relacionado a um “acerto de contas interno” do PCC, já que no local estariam apenas presos ligados à facção e outros que dizem não pertencer a nenhum grupo criminoso. Detentos ligados à FDN teriam sido transferidos do local após o conflito de outubro de 2016. O governo de Roraima afirmou ainda que não houve rebelião, já que nenhuma arma de fogo foi roubada, não houve depredação nem tentativa de fuga, e que a chacina foi o resultado de uma ação rápida de um grupo de detentos, armados com faca.
10) ALCAÇUZ (RN). Em 14 de janeiro de 2017, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, em Nísia Floresta, região metropolitana de Natal, teve início uma rebelião causada por guerra de facções, que se estendeu por quase duas semanas e terminou com 26 detentos mortos. Durante o motim, pelo menos 56 presos fugiram.As vítimas, ligadas ao Sindicato do Crime (SDC), facção aliada do Comando Vermelho, foram executadas por integrantes do PCC. Foi o terceiro massacre em prisão no Brasil nos primeiros 15 dias de janeiro de 2017. A polícia só conseguiu retomar totalmente o controle do presídio e debelar a rebelião 14 dias após seu início, com a ajuda do governo federal. Os líderes da rebelião, pertencentes ao PCC, foram transferidos para outras unidades prisionais do estado.
* com edição de Matilde Silveira
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