domingo, 24 de dezembro de 2017

LITERATURA NO CARCERE

GAUCHAZH - 22/12/2017


Como a leitura transforma presos no Rio Grande do Sul. Condenado a 357 anos, Félix dos Santos, 49, é um preso que se diz resgatado pela literatura. A redução da pena para detentos que leem na cadeia ainda não é regulamentada no Estado, mas há juízes que abrem exceções 


Renato Dornelles

Marcelo Kervalt



Quando ingressou no sistema penitenciário, Luiz Augusto Félix dos Santos, então com 20 anos, carregava a fama de Monstro do Partenon. O apelido era compreensível. Havia sido preso por uma sequência de crimes graves, como homicídios, estupros, roubos e formação de quadrilha, a maioria cometidos no bairro da zona leste de Porto Alegre.


Passados 29 anos e seis meses, Félix, como é chamado hoje, aos 49, garante estar pronto para deixar a prisão e retomar a vida longe do crime. Apesar de a soma de suas condenações chegar a 357 anos, nove meses e sete dias, as penas privativas de liberdade não podem ultrapassar 30 anos. Com isso, faltam-lhe seis meses. A chave para mudar, segundo ele, foi a leitura.


— A literatura foi o que me transformou, em todos os sentidos — afirma o apenado, há quatro meses na ala do regime semiaberto da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ).


No cárcere, escreveu dois livros, ambos publicados. Agora, prepara mais dois. Até aprender a ler e a escrever – já no período de encarceramento –, Félix teve infância, adolescência e juventude conturbadas.


Aos cinco anos, ele e quatro irmãos mais novos foram abandonados pelo pai e, depois, pela mãe. Uma avó os criou, mas, com dificuldades para sustentar os cinco, localizou a mãe das crianças e lhe entregou Félix. Por exigência do novo marido, a mulher acabou encaminhando o filho à então Fundação Estadual do Bem Estar Social (Febem).


– Comecei a conhecer o outro lado do ser humano, com abandono, maus-tratos e violência. Fui me revoltando e resolvi fugir. Só que acabei descobrindo a duras penas que as ruas eram piores que a Febem. Sempre digo que não me tornei uma pessoa má por prazer, por alegria, mas por questão de sobrevivência. O resultado foi uma criança revoltada e um jovem criminoso – avalia.


A percepção de Félix de que a leitura é importante na regeneração é avalizada pela psicóloga e psicanalista Ana Beatriz Guerra Mello, mestre pela UFRGS. Ela diz que ler no cárcere impede a deterioração do psiquismo.
Félix tem 49 anos, sendo que 29 deles passou atrás das grades. No próximo ano, ganhará as ruasMateus Bruxel / Agencia RBS


– Os livros permitem contato com o mundo. O psiquismo intacto é fundamental para enfrentar esse período adverso, para não enlouquecer – diz Ana Beatriz.


Membro da câmara técnica do Conselho Federal de Medicina, o psiquiatra Carlos Salgado acredita que diante da hostilidade de um presídio, a abstração pela leitura e o debate do tema tendem a fazer com que os presos passem a ter mais recursos de argumentação que fogem à violência.


– A tendência é que haja um abrandamento das atitudes e que, com mais facilidade, encontrem-se saídas elaboradas para os problemas. Além do que, enquanto lê, o preso fica longe das negociatas e da criminalidade – detalha o psiquiatra.


No RS, um projeto inovador, o Banco de Livros (leia na página ao lado), já beneficiou 792 entidades com quase meio milhão de obras. Em 14 Estados, a remição da pena por tempo de leitura é regulamentada. Aqui, a minuta está com o jurídico da Superitendência dos Serviços Penitenciários.


A infância e a adolescência de Félix foram marcadas por atos infracionais, violências sofridas, internações e fugas. Dos 18 aos 20 anos, cometeu a série de crimes. Na chegada à prisão, antes mesmo de receber sua primeira condenação, ouviu do servidor que o encarcerara um presságio que o deixou preocupado: só sairia dali dentro de um caixão. No sistema, chegou a ser considerado “irrecuperável”.


– Este ano, quando recebi a progressão para o semiaberto, a psicóloga leu os prontuários da época de minha entrada que dizem que não adiantaria fazer qualquer trabalho comigo porque seria infrutífero, mas o passar dos anos respondeu diferente – conta.


O domínio da leitura e da escrita possibilitou troca de correspondências com a mulher com a qual acabaria se casando. Ela engravidou durante visita íntima, e hoje tem um casal de filhos, de 23 e 26 anos, e um neto, de dois.

O benefício da leitura no cárcere


O fascínio pela leitura demonstrado por Félix é compartilhado por uma mulher de 41 anos, que cumpre pena no Presídio Feminino Madre Pelletier.


– Lendo, saio daqui de dentro. Consigo esquecer o que está acontecendo e sentir como se estivesse livre – explica.


O prazer de folhear romances, como os de Augusto Cury, ou entrar no mundo imaginário de Licínia Ramizete aflorou nela, em 2015, três anos depois de entrar, por homicídio, na Madre Pelletier. Assim como a maioria dos detentos, a última coisa em que ela pensava na prisão era explorar o acervo da biblioteca, até que foi selecionada para participar de um projeto-piloto de remição de pena pela leitura.


A detenta se dedicou às 267 páginas de O Semeador de Ideias e aos mistérios de O Vampiro da Internet (leia a resenha feita pela presa abaixo), obras que lhe renderam oito dias a menos de reclusão. Depois, passou a se doar ao gênero que mais lhe agrada, o espiritismo. Descobriu em Zíbia Gasparetto o melhor passatempo dentro do cárcere.


– Pego um livro e quero terminar. Quero ler até o fim para saber o que aconteceu. É bom para refletir sobre os erros.


Condenada a 21 anos em regime fechado, a personagem dessa não ficção espera pela implantação no Rio Grande do Sul da leitura de livros como redutora de pena. Formada em Administração e logística, a leitora do Madre Pelletier pretende, ao ir para o semiaberto, encontrar um emprego e não deixar que os livros se tornem apenas uma das poucas lembranças boas da prisão.
Condenada a 21 anos por assassinato, presa adquiriu hábito da leituraMateus Bruxel / Agencia RBS

Resenha do livro O Vampiro da Internet


Uma história bem contada, humorada, triste, cheia de sonhos e ilusões de uma autora para mim desconhecida. Licínia Ramizete, estreante, mostrou-se apaixonada pela vida, pelo mundo, pelos seres humanos. Nos mostra de uma maneira sonhadora, inteligente, entre sonhos e realidade, nossas próprias verdades. O texto é contado nos dias de hoje com modernidade, com realidade. Ao mesmo tempo nos remete a tempos antigos mostrando-nos momentos já vividos caminhados entre sonho e realidade. A autora nos apresenta a personagem Marília, confusa, solitária, cheia de medos, dúvidas, desiludida com a vida e com os homens em geral. A personagem, no decorrer dos fatos vividos e relatados, nos mostra uma mudança obtida no seu íntimo, adquirindo um novo jeito de viver e ver a vida. Pensando e agindo de maneira mais confiante, determinada e desafiadora. De um modo simples e bem claramente, a autora nos leva a repensar nos nossos próprios atos, os quais nos levam a consequências em nossas vidas, ensinando o que é importante para a evolução do ser humano com clareza, ilusão, humor e imaginação com modernidade, abordando um assunto real à vida, ao universo e aos seres humanos. Enfim, uma ótima história com uma bela escrita e de fácil entendimento.

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