domingo, 7 de janeiro de 2018

GUERRA ENTRE FACÇÕES DENTRO DOS PRESIDIOS


A rebelião em Goiás é mais um episódio da guerra entre facções nos presídios. O motim que deixou nove mortos, 14 feridos e dezenas de foragidos é a mais recente batalha de uma disputa entre as grandes facções criminosas do país

MATEUS COUTINHO| DE APARECIDA DE GOIÂNIA
EPOCA 05/01/2018

 
A AGONIA DA ESPERA
Familiares se desesperaram em busca de notícias. Eles não sabiam se seu parente preso estava vivo, ferido ou foragido (Foto: Sérgio Lima/ÉPOCA)

A tarde começou agitada no primeiro dia do ano na Colônia Agroindustrial de Aparecida de Goiânia, em Goiás, onde ficam os presos que cumprem pena no regime semiaberto no estado. Situada no centro do complexo, a ala C, dominada pela facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), começava a se movimentar. Nela amontoavam-se 388 detentos em 12 celas. É a maior ala do presídio. A insatisfação dos detentos após quatro dias sem água serviu de estopim para que as duas maiores organizações do país, PCC e a carioca Comando Vermelho (CV), protagonizassem mais um capítulo da sangrenta briga por território que se estende há mais de ano na esteira da omissão dos governos.


Por volta das 14h30, sob o efeito de drogas e portando facas e armas de fogo, os detentos da ala, dominada pelo PCC, se reuniram e rumaram para a ala B, mais identificada com o Comando Vermelho, onde ficavam 180 detentos. O atalho para chegar à ala vizinha, separada por um muro e um portão de grade, foi um buraco aberto na parede da cela de um dos detentos, cavado há dias. A cena foi seguida por tiros, ataques e agressões que tinham alvos definidos: os membros do Comando Vermelho nas alas A e B.

As cenas de brutalidade que se seguiram foram gravadas por celulares dos próprios detentos em vídeos que remontam às rebeliões ocorridas antes em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte. Detentos protagonizavam ataques brutais de facas e até machado, queimavam colchões e depredavam geral, tudo com as saudações ao PCC. Em outros, celebravam decapitações, em meio a vísceras esparramadas pelo local e até dependuradas na cerca do presídio.

Por volta das 16 horas o Grupo de Operações Penitenciárias Especiais (Gope), uma espécie de tropa de choque da segurança penitenciária no estado, com apoio do Batalhão de Choque da Polícia Militar, conseguiu retomar o presídio, e os bombeiros controlaram as chamas. O estrago feito: dois decapitados, sete mortos no incêndio (todos do Comando Vermelho) e 14 feridos, além de três armas de fogo apreendidas (um revólver 38 e duas pistolas 9 mm), 15 facas e 200 gramas de cocaína.




A tragédia na Colônia Agrícola de Aparecida de Goiânia, com base em relatos de agentes, detentos, familiares e investigadores, era mais que esperada e consequência de uma briga por território entre os dois grupos criminosos que controlam o tráfico. Desde outubro de 2016, o CV se uniu a organizações criminosas locais – como Família do Norte, no Amazonas, e Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte (ver o mapa) – para enfrentar o PCC. A reportagem teve acesso a um mapeamento dos órgãos estaduais que mostra que, de janeiro a dezembro de 2017, o número de detentos ligados ao PCC no estado disparou de 40 para 700.

A facção está presente em cerca de 80% dos 137 presídios de Goiás e chega até a fazer conferências semanais por telefone com todos eles. O estado é estratégico para o tráfico por uma questão logística: além de estar literalmente no centro do país, facilitando a distribuição para qualquer região, fica próximo de Brasília, um importante mercado para o tráfico devido à alta renda de seus moradores, além de ser utilizado também na rota internacional, distribuindo drogas que vêm de países vizinhos como o Paraguai. A articulação da quadrilha contrasta com a desorganização e má gestão do sistema penal abarrotado em Goiás, não muito diferente do resto do país.

Na hora do massacre em Aparecida de Goiânia, havia apenas cinco agentes penitenciários no local para cuidar dos 721 detentos que estavam lá – 388 da ala C, dominada pelo PCC. Diante da proporção, muito abaixo da recomendação internacional de um agente para cada cinco detentos, os próprios funcionários sugeriram aos presos que não estavam envolvidos no conflito que deixassem a prisão, rodeada por um matagal e próxima a uma região industrial do município.

Segundo relatório da Secretaria de Segurança Pública de Goiás, 207 detentos seguiram a recomendação dos agentes e fugiram para o entorno do local, mas retornaram tão logo a tropa de choque da Polícia Militar retomou o controle, por volta das 16 horas do dia da rebelião. Outros 106 presos, porém, aproveitaram a oportunidade para fugir. Nesse grupo estava o filho da aposentada Sônia, de 55 anos (ela não quis se identificar com o sobrenome), que foi recapturado no mesmo dia, assim como outros 28 detentos. Na última vez que Sônia visitara o filho, em 31 de dezembro, o rapaz adiantou para a mãe o que estava por vir: “Mãe, vai ter invasão aqui, a turma da ala C vai invadir nós (sic)”, relatou. Sônia era uma das dezenas de familiares que passaram os primeiros dias do ano sem saber se seu parente preso estava vivo, ferido ou foragido.

MARCAS
Ricardo Cristiano Lima exibe os ferimentos que sofreu. Ele retornou à prisão depois de se esconder na mata (Foto: Sérgio Lima/ÉPOCA)

Dois dias após o motim que chocou o país, uma mulher loira era uma das cinco pessoas atrás de informações sobre detentos no balcão de entrada da Colônia Agroindustrial. Abalada após ouvir dos agentes do presídio que seu marido não estava lá, ela começou a caminhar de um lado para o outro. Foi para um canto, em uma parede na lateral da recepção, para falar ao telefone. “Meu marido é esperto, ele não ia se machucar”, afirmava aos prantos. Abordada pela reportagem, que presenciou a cena, ela não quis dar entrevista.


Ricardo Cristiano Lima, de 29 anos, foi um dos detentos que retornaram espontaneamente à prisão. Por volta das 16 horas da quarta-feira, o detento chegou à Colônia Agrícola para se entregar. Ferimentos em seu corpo, provocados por pedradas, exibiam nele a marca da ação do PCC. Ricardo ficava na ala A e fugiu no dia do motim. Correu pelo vasto matagal que circunda a penitenciária até chegar a uma favela próxima. “Me escondi em uma casa e fiquei esperando”, contou. Retornou à prisão com sua advogada e só se apresentou após ter a garantia de que seria transferido para a Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG ), para onde foram mandados os presos sem relação com a briga.

A origem da rebelião remonta a fevereiro do ano passado, quando um dos maiores traficantes do estado morreu em uma briga de gangues na POG. Thiago César de Souza, então com 32 anos, era ligado ao PCC. Sua morte desencadeou uma reação do grupo criminoso, que passou a se expandir e ocupar o espaço que era do Comando Vermelho, acirrando o clima nos presídios. Segundo investigadores, as práticas adotadas pelas lideranças do grupo nos presídios têm sido a extorsão e a ameaça, com a promessa de garantir proteção ao preso e a seus familiares, moeda de troca irrecusável para os detentos. Ainda assim, o Comando Vermelho também tem mostrado sua força.



Cinco dias antes do episódio em Aparecida, membros do CV decapitaram um integrante do PCC no presídio do município de Jaraguá, no interior do estado. O caso ainda está sob investigação da Polícia Civil. O Comando Vermelho tem mantido força nas cidades localizadas nas fronteiras do entorno do estado, enquanto o PCC se concentra na região central, mais próxima do Distrito Federal.

Somente na noite de quarta-feira o governo do estado admitiu que a rebelião em Aparecida foi devido ao confronto das duas facções. Ainda assim, até a noite de quinta-feira, as autoridades não puniram e nem retiraram da Colônia os detentos da ala C. Foram transferidos apenas os das alas A e B. Para tentar apaziguar os ânimos, a Justiça ainda autorizou temporariamente os detentos que trabalham durante o dia a não retornar à noite para dormir – mesmo sem tornozeleiras eletrônicas.


A situação em todo o estado, porém, continua prestes a explodir. Na noite da quinta-feira, dia 4, houve uma nova tentativa de rebelião dos detentos da ala C. Na madrugada da sexta-feira, dia 5, foi a vez de a POG registrar um princípio de motim. A maior preocupação das autoridades agora são os presídios do interior, que não contam com a estrutura do choque e das tropas especiais da PM para agir rapidamente e controlar motins. O secretário de Segurança Pública de Goiás, Ricardo Balestreri, afirmou na sexta-feira que mapeou articulações de aproximadamente 20 rebeliões no estado. Nenhuma se concretizou. O diretor-geral de administração penitenciária, Edson Costa, afirmou que vai transferir presos para tentar desarticular as rebeliões. Uma inspeção dias antes, por determinação da presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, havia constatado que os agentes não controlam a situação do presídio de Aparecida.

A disputa sangrenta em Goiás é apenas mais um capítulo no previsível avanço do crime organizado nas cadeias e fora delas. As duas grandes facções passam por um processo de consolidação do poder no Brasil todo, à sombra da omissão das autoridades que não assumem um plano estratégico de âmbito nacional. Enquanto cada estado tenta conter a ameaça sozinho, o Brasil se vê cada vez mais refém de grupos bem estruturados e sem escrúpulos.

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