terça-feira, 9 de maio de 2017

TRIBUTO À BARBÁRIE

CONSULTOR JURÍDICO 11 de junho de 2011


"Estado esconde o preso e vira refém do crime"


Por Jomar Martins




A partir do dia 1º de agosto de 2011, o Presídio Central de Porto Alegre não poderá abrigar mais do que 4.650 detentos. A direção simplesmente deve recusar o ingresso de novos presos, independentemente da natureza da prisão. A determinação partiu, no início de junho, do juiz Sidinei José Brzuska, da Fiscalização dos Presídios da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre e da Região Metropolitana.

Há 12 anos, este que é um dos maiores e mais problemáticos presídios do estado do Rio Grande do Sul, tinha 2.000 detentos em suas galerias, quando a lotação máxima permitia 1.700 apenados. Em novembro de 2010, o número chegou a 5.300 e, no início de junho, baixou para 4.809.

A tendência, avalia o juiz, é fazer com que este teto seja gradualmente reduzido até o cumprimento integral de decisão do Tribunal de Justiça de 1995, determinando que o Central funcione apenas para presos provisórios. Naquele ano, cumpriam pena nesta condição 1.859 presos — e já extrapolavam a capacidade.

A situação chegou a este ponto, segundo Brzuska, porque o estado passou a deixar no presídio os que já estavam lá quando da condenação definitiva. Ou seja, “os presos ingressam na condição de provisórios, seja por flagrante ou prisão preventiva e, uma vez condenados, não são transferidos para outras penitenciárias, mas permanecem cumprindo pena no estabelecimento prisional, em flagrante desobediência à decisão da 1ª Câmara do Tribunal de Justiça de 1995”.

Para o juiz da VEC, esta falha na execução penal é grave e denota o descaso do estado, mas não é um fato isolado. Na raiz de todos os problemas, está a falta de vagas no sistema prisional — cerca de 12 mil em todo o estado. Na sua mesa de trabalho e nos armários, repousam pilhas de ofícios e outros documentos remetidos ao governo do estado, cobrando providências para sanar as dificuldades causadas pela superlotação das casas prisionais. O pedido mais reiterado é pela construção de novas unidades.

“A Região Metropolitana tem 13 mil dos 31 mil presos do estado. Há oito anos, não se constrói uma nova prisão em regime fechado para homens”, afirma, em tom de lamento. Atualmente, conforme o Departamento de Planejamento da Superintendência dos Serviços Penitenciários do Rio Grande do Sul (Susepe), o estado conta com 30.348 condenados cumprindo pena. Os homens são maioria: 28.276.



Além da superpopulação carcerária, da falta crônica de servidores e de deficiências de estrutura, há um novo fenômeno nas cadeias: a gestão compartilhada com os presos. O juiz a sua descoberta, nas suas andanças pelo sistema prisional do estado, de cantinas dentro dos presídios, onde é possível encontrar escovas de dente, papel higiênico, barbeador. Itens básicos que não são oferecidos pelo Estado ao cidadão preso.

‘‘É uma desumanidade o que acontece dentro das nossas prisões. Chegamos ao limite da tolerância. Se as autoridades continuarem escondendo o preso da opinião pública e se esta continuar achando que presidiário não é gente, o sistema marcha para a barbárie’’, adverte.



Quem olha o acervo de fotos no computador do juiz — de onde estas foram tiradas — não tem dúvida de que o Rio Grande do Sul já não foge à regra do que se vê pelo Brasil: presídios superlotados, sujeira por toda a parte, doentes sem atendimento, corrupção, maus tratos e a tolerância com o crime organizado. Parece que o estado se demitiu de suas funções, responsabilidades e prerrogativas.

Nesta entrevista, o juiz Sidinei Brzuska fala dos principais problemas das cadeias gaúchas, dá pistas de como solucioná-los e tece críticas ácidas tanto à omissão do Poder Executivo, a quem cabe a guarda e ao atendimento dos que cumprem pena, quanto ao descaso da sociedade para com a sorte dos presos. ‘‘Para muitas pessoas, preso morto é ‘um a menos para incomodar’. Esta manifestação é reveladora do estado de consciência da nossa sociedade.’’

Leia a entrevista:

ConJur — Como e quando começou este trabalho de fiscalização dos presídios?
Sidinei José Brzuska — Na Região Metropolitana de Porto Alegre, existem 27 casas prisionais. Para poder atendê-las de forma satisfatória, a Justiça gaúcha achou por bem criar um Juizado da Fiscalização. Os juízes que atuam nos processos criminais não têm como, ao mesmo tempo, fiscalizar a execução penal e os presídios. Então, optou-se por uma cisão na jurisdição. Os colegas das VECs (Varas de Execução Penal) despacham os benefícios individuais, progressão ou remissão de pena, livramento condicional, entre outros; e o Juizado, sob a minha jurisdição, cuida da fiscalização das casas prisionais e das decisões mais coletivas. Por exemplo: a interdição de uma casa prisional, transferência massiva de presos de um presídio para outro, troca de jurisdição etc. Este trabalho existe desde 2008, mas eu atuo na execução criminal desde 1997, ano em que me tornei juiz.

ConJur — O senhor acompanhou o Mutirão Carcerário no estado, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça? Como avalia este trabalho?

Sidinei Brzuska — Bem, até o momento [início de junho], nós não recebemos o relatório final do Mutirão Carcerário. Só tomamos conhecimento do resultado parcial deste levantamento, que analisou cerca de 23 mil processos. Sob o ponto de vista estrutural, foi importante ter esta radiografia. E, principalmente, porque ela foi produzida por alguém que veio de fora. O juiz enviado pelo CNJ é da Justiça do Maranhão. Isto leva a uma visão mais isenta e permite apresentar, livremente, sugestões para que se possa melhorar o sistema. Penso que o resultado final é mais sincero, porque quem levanta as informações não está todo dia ali, enfim, não é parte do sistema. Eu, por exemplo, coordenei o Mutirão Carcerário no Espírito Santo. Por este aspecto, valeu o trabalho.

ConJur — O Mutirão soltou presos? Apurou irregularidades?
Sidinei Brzuska — As pessoas acham que o Mutirão é feito para soltar preso ou coisa que o valha, mas as coisas se dão de outro modo, bem diferente. Eu monitorei a população carcerária do estado durante o Mutirão. E o impacto do Mutirão sobre a totalidade de presos foi de 0,39%. Ou seja, menos de 0,5% ao longo de 30 dias [o Mutirão começou dia 14 de março e se estendeu até 13 abril]. Nem dá para notar. Não houve reflexo na diminuição do número de presos, não houve esvaziamento de prisões, soltura em massa ou reforço na segurança pública, nada disso. O número de irregularidades apuradas foi mínimo, pois nós já tínhamos ciência destas. Por isto, segundo fiquei sabendo informalmente, o colega que coordenou o Mutirão, juiz Douglas Melo Martins, quer propor o modelo do nosso Juizado para outros estados.

ConJur — Quais os maiores problemas do sistema prisional gaúcho?

Sidinei Brzuska — Nós temos um problema principal, que é a superlotação das casas prisionais, e deste decorrem todos os outros. Ocorre que este problema vem acompanhado da ausência de servidores em quantidade suficiente, da falta de infraestrutura etc. A soma destas carências vai gerando um vácuo na gerência do sistema, propiciando o aparecimento de administrações paralelas. Com a ausência progressiva do Estado, a administração dos presídios tem de ser feita de forma compartilhada com os presos. E vai cedendo cada vez mais espaço aos presos. Resultado previsível: o Estado começa a se tornar refém do crime e tem dificuldade de retomar o terreno cedido.

ConJur — O senhor. tem um exemplo marcante desta política?

Sidinei Brzuska — Recentemente, estive no Presídio Central e fotografei uma cantina das galerias. Não é a cantina do estado, é uma cantina dos presos, mercadinho dos presos. Existem muitas. Na parede, expostas, várias escovas de dente, assim como aparelhos de barbear, novinhos, prontos para serem vendidos. Além dos itens de higiene pessoal, o mercadinho expõe azeite, massa, pudim, entre outros gêneros de primeira necessidade. Bem, conversando com um servidor da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), que tem 32 anos de serviço público, perguntei: “Nestes 32 anos, quantas vezes tu entregastes uma escova de dente a um preso?” Sabes o que ele me respondeu? “Nunca, nenhuma vez.” Então, o Estado não faz a sua parte. O estado não fornece para o preso um prato, uma colher, uma muda de roupa, um sabão, muito menos papel higiênico. O problema é que o preso necessita destes bens. O que ele faz? Acaba se associando a outros presos para conseguir o que o Estado lhe nega. Ao buscar esta sociedade, ele se torna um devedor. E devedor tem que pagar, com o que tiver à mão: com o corpo, levando droga pra dentro da cadeia, executando tarefas. Cometendo crimes nas ruas. Às vezes, paga com a própria vida.

ConJur — Mas o Presídio Central não foi reformado?

Sidinei Brzuska — Fizeram uns pavilhões novos, de péssima qualidade, um puxadinho e alguns remendos. Há 12 anos, a população do Presídio Central era constituída de 2.000 presos, quando deveria ter, no máximo, 1.700. Hoje, tem 4.800. É algo desumano. Por isto, a partir de agosto, já determinei que este contingente não poderá passar de 4.650 pessoas.

ConJur — O condenado vai para o sistema prisional para ser castigado ou ressocializado?

Sidinei Brzuska — A prisão não escapa da questão punitiva. No entanto, a pena não deveria se esgotar na punição, a fim de melhorar o preso. Como não chegamos até este patamar, não podemos falar em ressocialização ou profissionalização do preso. Quando acontece, é uma exceção. São iniciativas pontuais, individuais, de um diretor, de um juiz ou promotor, e não do Estado. Porque o Estado não tem uma política clara, objetiva, massiva, que beneficie milhares de presos. Simplesmente, esta política não existe. Existem exemplos de boas práticas, mas que não se transformaram em política pública, que atinja a todos.

ConJur — A falta de uma política que recupere o preso explica a reincidência criminal?

Sidinei Brzuska — Sim, e nós temos índices altos de reincidência. Ocorre que muitos casos de reincidência são fabricados pelo próprio estado. Não temos como mensurar isto, porque inexistem pesquisas na área, como existem em outros estados. Pesquisa feita numa prisão feminina do estado de São Paulo aponta que 98% das detentas faziam parte do tráfico de drogas. Deste universo, 100% delas estavam numa posição subalterna na hierarquia do tráfico; ou seja, eram usadas pelo tráfico. Transportavam ou guardavam drogas. A pesquisa também apontou que 70% delas tiveram uma relação com alguém vinculado ao crime de tráfico de entorpecentes. Enfim, o estudo mapeou várias situações que explicam por que aquele grupo de mulheres foi parar no crime. No Rio Grande do Sul, nós não temos um estudo semelhante que identifique por completo as causas do crime; logo, não temos uma política para fazer frente e diminuir estas causas.

ConJur — Se o RS não tem uma política de prevenção, nem de ressocialização do preso, o foco da segurança pública fica restrito ao enfrentamento, certo?
Sidinei Brzuska — É isto. Na verdade, não temos nada. Nós vamos jogando as pessoas na prisão e pensando que estamos fazendo o bem. Simplesmente, jogamos estas pessoas na prisão, de forma que se virem lá dentro. O resultado disso é um desastre.

ConJur — Por que, afinal, o sistema prisional e a segurança pública não se transformaram em prioridade para os políticos?
Sidinei Brzuska — Bem, são vários os motivos. É importante notar que o que acontece dentro das prisões é de conhecimento de uma parte muito pequena da população. A sociedade, como um todo, acaba não tomando conhecimento completo, minucioso, dos fatos que se sucedem dentro das prisões. Além disso, também existe a ideia, muito incrustada no inconsciente coletivo, de que o preso tem que sofrer, tem que passar trabalho etc. Então, é um somatório de fatores que faz com que a sociedade se afaste do problema e não queira tomar ciência do que ocorre no sistema. Por outro lado, a classe política é movida por uma pressão social. E a pressão social diz que o preso tem que pagar, tem de sofrer, tem que penar etc. Não há pressão social para resolver o problema prisional. Observe que até naquelas questões em que temos pressão social o estado demora a resolver. É o caso da duplicação da BR-116, da ponte sobre o Rio Guaíba, o problema do engarrafamento do trânsito na Estação Rodoviária de Porto Alegre, entre outros. Veja: o estado levou muitos anos para enfrentar a solução destes problemas. Se não houvesse pressão, nunca iria resolver. As pessoas não irão pressionar a classe política, porque, no fundo, não se interessam pela sorte de quem está lá cumprindo pena. Para muitas pessoas, como pude observar pessoalmente numa exposição de fotos sobre direitos humanos, preso morto é ‘‘um a menos para incomodar’’. Esta manifestação é reveladora do estado de consciência da nossa sociedade.

ConJur — A maioria das casas prisionais existentes no estado vive esta realidade?

Sidinei Brzuska — Na maioria, há falta de higiene, de boas acomodações e de atendimento à saúde ou à promoção do trabalho de recuperação do preso. Isso é a regra, embora existam as exceções. Interessante é que a palavra preso leva à ideia de homem. Hoje, a situação é mais grave no universo das detentas. Nós temos um presidio feminino em Porto Alegre, chamado Madre Pelletier, que não foi projetado para abrigar mulheres. Sequer há banheiros em algumas galerias. Nestas, as necessidades fisiológicas são feitas em potes de plástico. São 550 presas vivendo em más condições. Em Torres, no litoral norte, tem um presídio feminino que também não foi projetado para mulheres, apenas adaptado para receber condenados do sexo feminino. Os banheiros são do tipo ‘‘turco’’ [vaso sanitário no chão, como um buraco]. O único presídio feito sob medida para mulheres é o de Guaíba, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Ele está parcialmente ocupado, por falta de servidores. Se para os apenados homens devemos muito, para as apenadas mulheres devemos tudo, 100%. Ou seja, nós discriminamos as mulheres também no sistema prisional.

ConJur — E a questão das mortes dentro dos presídios? Há registro destes fatos, para embasar uma possível reparação?

Sidinei Brzuskas — Bem, nós, do Juizado de Fiscalização dos Presídios da Região Metropolitana de Porto Alegre, que concentra a maior massa carcerária, procuramos registrar todos os óbitos no sistema. O que verificamos é que a maioria dos presos morre em decorrência de descaso. Um percentual muito pequeno, creio que por volta de 5%, morre vítima de homicídio dentro das casas prisionais. Nestas duas situações, há flagrante falha do estado, de guarda e de atendimento. Junto com o Ministério Público, nós fotografamos o preso morto e verificamos o que se passou com ele, que tipo de atendimento recebeu. Enfim, levantamos as informações possíveis para determinar a causa daquele fato. Depois, chamamos os familiares do preso e entregamos uma cópia deste material, com as fotografias, para fazerem o que entenderem adequado. Alguns, irão demandar na Justiça contra o estado, pedindo reparação financeira. Veja a gravidade: um preso, sob a tutela do estado, morre dentro de um órgão que deveria garantir a sua segurança enquanto decorresse o tempo da pena. Esta documentação é muito útil para esclarecer a autoria de crimes dolosos na Justiça. Às vezes, um processo vem da Polícia Civil sem nenhuma prova para ser julgado no Tribunal do Júri.

ConJur — Os que cometem crimes de menor potencial ofensivo precisariam ficar nestas cadeias, em contato com presos perigosos?

Sidinei Brzuska — Claro que não precisam. As nossas cadeias, hoje, não estão abarrotadas por pessoas que cometeram crimes menores. Se tem alguém nesta condição, é exceção. A realidade mostra que os que estão nestas cadeias grandes são presos condenados por crimes hediondos — tráfico de drogas, homicídio e estupro. O único delito que leva à prisão, e que não é considerado hediondo, é o roubo, o assalto feito com arma de fogo, concurso de agentes ou com violência.

ConJur — O uso de tornozeleiras seria o mais indicado para punir os infratores de crime leve?

Sidinei Brzuska — Depende do que se espera da tornozeleira. A Lei 12.258/2010, que prevê o uso de tornozeleiras ou braceletes eletrônicos para o controle de condenados durante as saídas temporárias do regime semiaberto ou naqueles em prisão domiciliar, não entrou em vigor. Foi vetada pelo presidente da República em 2010. No projeto aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, havia a possibilidade de substituir a prisão pela tornozeleira, mas foi vetado. Sobrou o quê desta lei? Usar a tornozeleira somente para o controle do preso. Isto é, controlar o itinerário do apenado numa saída temporária, do regime semiaberto. É só o que se pode fazer com a tornozeleira.

ConJur — A Justiça gaúcha chegou a determinar o uso de tornozeleiras?

Sidinei Brzuska — Nós, aqui em Porto Alegre, usamos a tornozeleira para abrir vaga no regime aberto. Depois, como o estado não renovou o contrato com a empresa fabricante, acabamos soltando os presos, sem tornozeleira. E com o veto da lei, substituímos a tornozeleira pelo encarceramento, no regime semiaberto.

ConJur — O preso precisa trabalhar, para se recuperar, e o empresário não lhe dá vaga em função de seus antecedentes. Como sair deste impasse?
Sidinei Brzuska — Nós precisamos reconstruir o sistema, e isto passa por diversas providências. O condenado teria que começar a trabalhar a partir do momento que ingressa na prisão, para cumprir a sua pena. Mas, para que isso ocorra, nós temos fazer com que a sociedade civil olhe para dentro das prisões e participe, de fato, deste esforço. Num primeiro momento, isto pode custar caro ao estado, mas precisa ser feito. Nós não podemos exigir dos empresários a caridade, porque ela não faz parte deste jogo. Não que as pessoas não devam ser caridosas, mas tem que ser uma atitude voluntária, livre, da consciência de cada um. Falo da parceria da iniciativa privada com o estado, que detém a obrigação constitucional de manter o sistema prisional. Vamos pegar o exemplo da cozinha dos presídios, hoje, todas ‘‘atiradas’’ nas mãos presos. Primeiro, é preciso contratar uma empresa para administrar esta cozinha e fornecer a alimentação, de forma padrão. Esta empresa, então, vai contratar presos. Estes presos vão ter de trabalhar de jaleco, barba e unhas aparadas, dentes escovados e carteira de trabalho assinada. Assim é que se recupera o preso: trabalho, dignidade, recompensa pelo esforço. Hoje, o estado não dá uma muda de roupa para o preso — e deveria dar. Esta prisão poderia ter uma fábrica de roupas, o que também demandaria mão de obra. Então, a partir de duas ou três atividades, teríamos uma sequência de empregos. O ideal é que a manutenção das cadeias, embora venha a custar um pouco mais, seja feita pela mão de obra interna e devidamente remunerada. Fora os serviços de guarda, segurança e fiscalização, os demais têm de ser terceirizados, porque a iniciativa privada é mais eficiente para realizar o serviço e treinar estas pessoas. E o estado tem exigir qualificação desta mão de obra. Aí, sim, o preso começa a se ressocializar, a assumir uma nova postura, dentro do cumprimento da sua pena, na própria prisão. Ao fim da sua pena, ele será uma pessoa melhor, pois o envolvimento contínuo com o trabalho o afasta do crime. Isto é totalmente viável, mas o estado não quer fazer, justamente porque se nega a arcar com o custo inicial. Se fizesse isso, teríamos uma prisão ordeira, higiênica e com todos os serviços básicos atendidos.

ConJur — Que modelo serviria para Rio Grande do Sul?

Sidinei Brzuska — No Brasil, o estado que mais se modernizou na questão da segurança pública foi o Espírito Santo. Nos últimos quatro anos, gastou quase R$ 500 milhões para recuperar e modernizar o seu sistema prisional. Eles privatizaram uma parcela pequena do sistema, e a partir daí começaram a mudar a realidade. Não precisa privatizar todo o sistema, mas uma pontinha dele — 10% ou 20%, não mais que isso. Esta pontinha, bem-gerenciada, passa a se constituir em exemplo, em referência, para todo o sistema. Nós precisamos privatizar urgentemente os serviços da atividade-meio, que não sejam os de guarda, de segurança penitenciária. Sabes como as coisas funcionam hoje nos presídios gaúchos? A manutenção de tudo na prisão é feita pelo preso, de forma precária, sem fiscalização e praticamente sem nenhuma compensação financeira para quem realiza a tarefa. E depois a sociedade se queixa de que os presos mandam na prisão ou saem de lá pior. Poderia ser diferente?

ConJur — O crime organizado manda mesmo nas cadeias gaúchas?
Sidinei Brzuska — Primeiro, é necessário fazer a distinção do que ocorre na capital e da situação no interior do estado. São duas realidades muito diferentes. No interior, não há uma criminalidade que gera muito dinheiro. É aquele crime mais comum, de furto e tráfico pequeno. E estes crimes que envolvem menos dinheiro têm, logicamente, menos poder: de comprar, de corromper pessoas, de arregimentar gente. O pequeno bandido não tem poder, por exemplo, para dominar uma galeria, ordenar toque de recolher em vila, abastecer a cadeia com drogas e telefones celulares. Ele não consegue isto. Muitos são ladrões de ocasião, que não têm ‘‘onde cair morto’’. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, por ser um grande centro populacional e econômico, a coisa muda de figura. Aqui, o tráfico explora nichos de mercado, com os previsíveis desdobramentos, principalmente assassinatos por dívidas e desentendimentos. Nós não temos ainda, abertamente, uma guerra do tráfico. Tipo o bando ‘‘A’’ tentando tomar território do bando ‘‘B’’. O território está mais ou menos dividido, e todo o mundo lucra. E isto se reproduziu dentro das prisões. Os territórios externos guardam correspondência com os territórios internos nas prisões. Quem comanda um determinado território dentro da prisão também manda lá fora. E todas as pessoas que foram presas num determinando território seguem para cumprir pena na galeria correspondente. Se entrar noutra, morre. É a lei. Estas facções não têm uma ideologia determinada, como havia antigamente e que só sobraram resquícios. Nesta nova situação, não há ideologia, só dinheiro e negócios. E o negócio da droga movimenta muito dinheiro, pois há produto e um grande mercado a ser abastecido. A busca pelo lucro acaba movimentando uma série de crimes em sequência, com o roubo de carros, e envolve diretamente o criminoso solto e aquele que está preso. As grandes galerias dos presídios se tornam bastante interessantes para o tráfico, porque rendem muito dinheiro. O pessoal preso menciona que uma galeria rende faturamento entre R$ 30 mil a R$ 50 mil por semana. É por isto que, apesar da superlotação, não se vê motim nestes presídios, nem tentativa de fuga em massa. Ninguém quer isso, porque está rolando dinheiro. É o shopping do tráfico.

ConJur — Cadeias menores não seriam uma boa solução, até pela facilidade de gestão e fiscalização? Alguém estudou esta possibilidade no estado?
Sidinei Brzuska — Sim, seria o ideal. Presídio pequeno não fica sob o domínio de facção criminosa. Todo mundo sabe quem é quem. Os agentes do crime não teriam condições de ‘‘fazer uma prefeitura’’, como eles se referem à tomada de um local para exercer administração paralela com o estado. Mas por que ainda não fizemos isto? Historicamente, até por pressão da sociedade, o agente público esconde o preso. Então, as cadeias são construções muradas, distantes do mundo. E ninguém sabe o que acontece por trás destes muros, nem em que condições as pessoas que estão sob a tutela do estado cumprem pena. Na verdade, as pessoas sabem o que acontece, mas varrem o problema para debaixo do tapete de suas consciências. Varrem, mas o problema não deixa de existir porque é ignorado. E fazemos isto como o regime semiaberto também. Uma de nossas melhores casas prisionais do semiaberto, o Patronato Lima Drumonnd, não tem grade, nem muro, porque ela é o inverso de como os presídios foram concebidos hoje. Todas as casas do semiaberto deveriam ser assim, abertas. Pra quê? Para que os que passam na rua possam olhar o que acontece lá dentro. O melhor controle social é o olhar do povo. A população não vai aceitar passivamente o fato do detento ficar lá, sentado o dia todo, sem fazer nada. Esta fiscalização é necessária. Cadeias escondidas não permitem isso, e a barbárie prospera. Então, eu penso que as casas do semiaberto devem ser pequenas e inseridas no meio urbano, dentro da comunidade. Por exemplo, construir uma pequena prisão ao lado de uma agência dos correios, de um posto de saúde, Juizado ou de outro serviço público que gere grande afluência de pessoas. Toda a pessoa que passa perto obrigatoriamente vê a casa e o que acontece por ali. A possibilidade de ocorrerem irregularidades diminui muito, porque o cidadão estará fiscalizando o estado.

ConJur — E como funciona o semiaberto hoje?

SIdinei Brzuska — Bem, no semiaberto, pela lei, o preso deveria ficar numa colônia agrícola ou industrial. Ou seja, uma fazenda ou indústria exploraria a mão de obra do preso. Decorridos um sexto do tempo de cumprimento da pena, ele passaria a ter direito a saídas. Mais tarde, então, ele iria para o regime aberto. No aberto, pela lei, a casa seria desprovida de grades e muros — não pode haver obstáculo contra fugas, nem mesmo guardas. Bom, a realidade é que o estado não tem esta estrutura, em nenhum dos regimes, e acabamos misturando tudo. Hoje, temos presos do semiaberto junto com aqueles de regime fechado.

ConJur — A corrupção é muito grande?

Sidinei Brzuska — Casualmente, tenho comigo, aqui, cópias de denúncias contra policiais e agentes penitenciários, pela prática de crime dentro dos presídios, na minha jurisdição. Nestes documentos, devem constar uns 70 acusados, e este número é só uma pequena mostra da realidade. O que acontece hoje? Como o tráfico de drogas começou a se tornar muito rentável, alguns servidores, até mesmo em função do controle social zero, foram contaminados pela situação. Muitos servidores vivem e trabalham longe dos seus familiares — porque a cadeia sempre é longe! — e estão permanentemente em dificuldades financeiras. Vendo o dinheiro circulando nos presídios, eles acabam cedendo à tentação, embarcando na corrupção. São os chamados corruptos de ocasião, que aproveitam uma eventualidade para se beneficiar, deixar passar uma droga, fazer vistas grossas etc. Alguns ficam com uma parte pequena do lucro, e outros acabam se tornando profissionais. Tem caso em que alguns já são réus mais frequentes. Não podemos excluir do problema alguns policiais militares, que atuam em dois presídios Central e Estadual do Jacuí.

ConJur — Em função de todos estes problemas, causados por desacertos administrativos e falta de políticas adequadas, não estaria na hora de se pensar na responsabilização dos agentes públicos, pessoa física, por direito de regresso?
Sidinei Brzuska — Hoje, não temos ambiente institucional para isso. Cabe à sociedade fazer esta cobrança e exigir que se criem mecanismos para fiscalização e apuração de responsabilidade. Se a sociedade não reagir, as coisas ficarão como estão. E o caminho adequado é que esta indignação chegue ao Poder Legislativo, que tem a prerrogativa de fazer as leis. Veja que as coisas se dão de forma diferente em cada Poder da República. O Poder Judiciário, por exemplo, troca de comando a cada dois anos. E qual é o reflexo nos usuários dos serviços da Justiça, na ponta do balcão? Muito pequeno. Quase ninguém nota a mudança, porque, em geral, as administrações que se sucedem seguem um planejamento estratégico. Isto não ocorre no Poder Executivo, onde, às vezes, muda tudo. Uma questão técnica, como a situação dos presídios, acaba se transformando num embate político. Não que não se deva discutir a aplicação de uma política pública, deve-se, mas a gestão da casa prisional deve ser conduzida de forma técnica. Cada vez que muda o governo, são trocados todos os diretores, o que ocasiona uma quebra de sequência dos procedimentos. Sem falar que existe uma falha de comunicação enorme entre a equipe do governante que sai e a do que assume. Os governantes, no primeiro ano de seu governo, não falam em sistema penitenciário e nem apresentam projetos para solucionar as falhas do sistema. Por que isso? É que dá tempo do eleitor cobrar, e os políticos teriam que explicar por que não fizeram o que prometeram. No segundo ano, sim, começam-se a falar em projetos. Aquele assunto fica rendendo até o terceiro ano de governo, quando, então, fica para o próximo governo. Aí, vem a campanha, e recomeça tudo de novo. E assim nós caminhamos.

ConJur — Qual foi governo que construiu mais presídios?
Sidinei Brzuska — O governo Britto [Antônio Britto Filho, que governou de 1995 a 1999] foi o que mais construiu presídios nas últimas décadas. Começou a erguer cinco casas prisionais moduladas: Charqueadas, Ijuí, Montenegro, Osório e de Uruguaiana. O governo Olívio Dutra não começou nenhuma obra na Região Metropolitana. Depois, veio o governo Germano Rigotto, que, igual ao seu antecessor, não ergueu um só presídio na Região Metropolitana de Porto Alegre, mas iniciou a construção de uma prisão em Santa Maria e outra em Caxias do Sul. O próximo governo foi o de Yeda Crusius, que começou a construir o presídio Arroio dos Ratos e construiu o presídio feminino de Guaíba e mais alguns albergues emergenciais. O de Guaíba não foi ocupado totalmente até agora, por falta de servidores. Presídio masculino, nenhum. Nestes 16 anos de governo, sob os mais diferentes matizes políticos, pouco se construiu e, na realidade, nenhuma vaga foi aberta no sistema fechado para homens, salvo o puxadinho do Presídio Central, porque o número de presos cresce mais do que o dobro do número de vagas criadas. Além disso, as reformas nas instalações do sistema prisional são feitas de forma precária e pouco ajudam a melhorar a vida do preso.

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