domingo, 2 de setembro de 2018

CADEIA PÚBLICA DE PORTO ALEGRE, DIFERENTES REALIDADES

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Por que será que insistem em falar em "sistema prisional" (sistema que não existe) quando o problema está na "execução penal"?

CORREIO DO POVO 01/09/2018

Cadeia Pública de Porto Alegre reúne diferentes realidades

Reportagem do Correio do Povo acompanhou rotina do presídio que abriga 5 mil detentos


Franceli Stefani


Eram quase 7h quando a revista geral da quinta-feira iniciou na Cadeia Pública de Porto Alegre (CPPA), também conhecida pela antiga nomenclatura, Presídio Central. Após se concentrarem no auditório, no último dia 16, a policial militar que estava com as chaves do portão de acesso ao interior da casa prisional retirou o cadeado, abriu a grade e liberou a entrada dos policiais que participam dos trabalhos. No dia em que a reportagem acompanhou por mais de oito horas o serviço dos agentes, a ação ocorreu no pavilhão F, onde três galerias aglomeram juntas mais de mil presos.

Primeiro, o efetivo do Grupo de Apoio e Movimentação (GAM), ainda durante a madrugada, por volta das 5h30min, dava início ao procedimento. Após ter a definição do local em que a revista aconteceria, os ocupantes do espaço foram avisados. O comandante do grupo, primeiro sargento Lélio Duarte Machado, explica que inicialmente ocorre o esvaziamento do local. É feita a revista minuciosa e, posteriormente, a revista estrutural. Semanalmente, a escolha é aleatória. “Retiramos os apenados em grupos, uma galeria por vez e é feita a revista no saguão do pavilhão A. É formada o que chamamos de linha, com o efetivo, para coletar algum material que eles possam tentar levar para o pátio durante nossa ação”, frisa, lembrando que em dia de revista, a rotina da cadeia é alterada e o fluxo de encarcerados nos corredores é reduzido.

Pouco a pouco, os homens, de todas as idades, a maioria da cor branca, vão caminhando em direção aos brigadianos, que os aguardam com luvas de borracha e máscaras. Um a um são revistados. Tudo o que o apenado carrega, além de blusões, casacos e calçados usados, é colocado atrás de uma linha amarela que percorre grande parte do corredor do pavilhão A. Nesse momento, é conferido o que cada um porta. Da caixa de remédios até o interior do tênis. Alguns são flagrados com pequenas porções de entorpecentes e são levados para a confecção do registro. Enquanto os demais, após o procedimento, são liberados e encaminhados ao pátio do pavilhão D, onde aguardam até o término do trabalho.

“Esse é o procedimento até o esvaziamento completo do local, a partir de então subimos para o pavilhão e começamos, galeria por galeria, a fazer o que chamamos de varredura.” Um grupo inicialmente checa se não ficou nenhum preso para trás, dormindo ou que não tenha descido. Em seguida, cada canto das minúsculas unidades, preenchidas por beliches, apetrechos individuais e um banheiro, é verificado. “Os materiais ilícitos que mais encontramos são drogas e celulares. São muitos, até porque temos incidência de arremessos feitos da rua para o pátio. Temos ainda as armas artesanais, mas não são constantes”, explica Machado.

Todos os materiais encontrados são levados até o setor responsável pela inteligência da Cadeia Pública para ser feita a contabilidade. No dia 16, logo no início dos trabalhos, foi encontrada uma pequena quantidade de droga na parede de uma das celas. O pacote estava em um compartimento falso, feito pelo apenado ao lado da cama em que dorme. Em outra, logo em frente, celulares e carregadores foram localizados em um buraco no encanamento do chuveiro. Mais para frente, dois policiais desconfiaram de uma terra mexida em baixo de onde fica o banheiro: mais material ilícito encontrado.

Segundo Machado, há dias em que a atuação é rápida, porém, às vezes as buscas levam um longo período. Já ocorreu de os militares terminarem às 20h. Entre as atribuições do GAM, além da revista, está verificar as galerias e a movimentação dos presos. A equipe destinada a missões é considerada fundamental para o andamento do serviço prisional na unidade.


Um mundo à parte



No pavilhão alvo da revista, os presos estão divididos em três galerias. Na “primeira do F”, como é chamada pelos policiais,estão os presos primários, que chegam sem condenação. Logo acima, estão as outras duas repartições, onde ficam integrantes de uma facção criminosa específica. Em cada uma das galerias são cerca de 300 presos. Eles se dividem em celas, que não possuem cadeados, com números variados de beliches. As camas são dispostas conforme o espaço, há quem durma no chão também. No corredor, também há homens, dispostos próximos à parede para que fique um corredor para facilitar a passagem. Isso porque não há lugar para todos. São os presos que limpam e organizam seus espaços.

Nas primeiras celas vivem os chamados plantões. São os representantes da galeria. Eles normalmente dividem o local com menos detentos. No espaço que vivem têm geladeira, forno, fogão, banheiro limpo e televisão individual. Quanto mais se anda, as condições do cárcere vão se modificando. No fundo de cada galeria há uma cantina, com arroz, feijão, refrigerante e outros produtos à venda para os presos. Muitos cozinham suas refeições na própria cela. Na porta de algumas, há anúncio de venda de cigarros. No interior de outra, sobre uma cama, uma caderneta com a contabilidade daqueles que já haviam pago e de quem tinha “pendurado”.

O diretor da CPPA, tenente-coronel Carlos Magno da Silva Vieira, afirma que, como prevê a lei, há na cadeia uma cantina. É como se fosse um supermercado onde, com recurso próprio, o preso pode ir até o local e comprar algum dos gêneros dispostos. “O Estado disponibiliza café, almoço e janta.” Ou seja, ninguém é obrigado a adquirir nada nesses espaços de comércio, o básico é ofertado diariamente para cada detento.


RICARDO GIUSTI - Normalmente os representantes das galerias vivem em celas com aparelhos como geladeira, forno e televisão



Um sopro de esperança



Em um dos espaços funciona a Atividade de Valoração Humana (AVH). Na Escola de Artes, um preso de 41 anos faz e transmite o conhecimento adquirido. Pintura, escultura, grafite, resina, talha em madeira e outros detalhes embelezam, mas muitas vezes seus autores passam despercebidos para os que lançam o olhar para o Central. Há sete anos no projeto, oito preso, ele ensina sua arte para quem resolve se engajar na iniciativa. Atualmente, 11 pessoas estão integradas na AVH.

O homem, que antes de entrar para o crime era um talentoso tatuador de Porto Alegre (requisitado por famosos), revela que está atrás das grades por homicídio, diz que “enganos da vida” traçaram esse caminho. “Devido ao alcoolismo, me deslumbrei com a luxúria e acabei aqui para corrigir meus erros. Muitos artistas que se mantêm anônimos passaram por aqui, pela escola. O projeto é o mais antigo que existe em atividade na cadeia, pelos meus registros, desde 1990”, conta. Hoje, ele acredita que tem uma nova chance, inclusive com o dinheiro da atividade laboral já comprou ferramentas para uma oficina de arte, além disso pretende voltar a tatuar.

A fala mansa e olhar calmo transmitem a esperança de uma ressocialização. Em breve, deverá ganhar as ruas e ter a possibilidade de recomeçar. Segundo ele, pronto para uma vida distante da que o levou até a Cadeia Pública. “Já fiz os exames necessários e estou no aguardo dos papéis para que eu possa sair daqui.” Enquanto fala da sua história, mostra os quadros que já pintou, locais em que já expôs, além de lembrar que uma de suas obras está na casa da presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Cármen Lúcia Antunes Rocha.

O artista salienta que não é todo apenado que pode atuar na atividade. “Lidamos com materiais contundentes, então, para se integrar, cada candidato passa por seleção com profissionais habilitados. Aqui a gente ensina, agora se a pessoa vai usar com sabedoria é de cada um. Temos plantado uma sementinha.” Responsáveis pelo layout da instituição, eles também elaboram a decoração para as ações que acontecem dentro da cadeia, como as atividades da Festa de Páscoa.

RICARDO GIUSTI - Na revista feita com a presença da reportagem, foram entradas armas artesanais e celulares



A luta contra a dependência




Entre tantos espaços na cidade chamada Cadeia Pública há um especial, na galeria E1. Tem cheiro e cor diferentes das demais acomodações. Não há sujeira, tudo é cuidadosamente arrumado pelos próprios detentos, que juntos buscam a força que muitas vezes parece distante. O projeto Luz no Cárcere nasceu para que os dependentes químicos conseguissem se livrar do vício. No dia 17 de agosto, completou sete anos.

Todos os que moram no espaço já viveram nos pavilhões localizados no fundo do Central. Questionados de quais galerias saíram, a maioria responde: F, B, D (grande parte) e A. Na vida de cada um, a escolha fez uma grande diferença. Ao contrário daquela parte do complexo, a E1 nem parece um local de reclusão e regime rigoroso. É um lar. Um dos líderes, um homem alto de olhos verdes, aos 35 anos afirma ter esperança de construir uma nova história quando sair do sistema prisional.

“Certamente, 85% da massa carcerária usa produto ilícito. Tudo gira em torno da droga. Cada um que está aqui optou pela transformação, por mudar de vida, se afastar de facções”, revela. A minoria, no entanto, se considera multiplicadora de boas novas. O caminho para chegar até o pavilhão, porém, não foi fácil. “Reconhecermos que precisamos de ajuda é difícil. Muitos nem chegam a ter essa chance e partem antes de tentar.” Segundo ele, a direção da casa disponibiliza opções para mudar de vida. Os interessados passam por psicólogo, assistente social, psiquiatra e, caso cumpram os requisitos, permanecem 21 dias para desintoxicação no Hospital Vila Nova.

“Aqui é muito diferenciado, não é galeria como lá no fundo. É outro clima. Temos atividades diárias.” Preso há quatro anos e oito meses, há dois anos e sete meses resolveu mudar. “Se não tivesse optado pelo projeto, não saberia o que seria da vida. Desde os 13 anos era dependente. Foram 20 anos nas drogas.” Com a estrutura familiar abalada, o homem, natural de Igrejinha, disse que sempre foi vinculado a facção e há quatro anos e nove meses não via suas irmãs.

Há algum tempo, em uma Festa da Família na unidade, elas apareceram. “Me disseram que fazia mais de 20 anos que não me viam de verdade. Joguei fora muitas oportunidades e hoje agradeço o resgate feito através do projeto.” Devido à prática de assalto e homicídios, sem conseguir ficar no semiaberto e ter sido preso sete vezes, garante que consegue ver as coisas de outra maneira. “Hoje eu não trocaria meu melhor dia de drogadição livre pelo meu pior dia preso, mas limpo e lúcido.”

O pequeno grupo difere da massa carcerária acumulada em corredores de pavilhões e celas. Vivem de maneira mais leve. Sentado no fundo da sala, um apenado de 31 anos conta que nunca teve envolvimento com facção, porém, cometia assaltos. Em um desses, acabou preso. “Quando cheguei aqui, escolhi uma galeria ‘faccionada’, porém busquei uma alternativa para, no futuro, sair sem problema com a minha família e onde moro. Não sair devendo.”

Ele lembra que a partir do momento que é feita uma vinculação, a dívida começa. Normalmente, as lideranças fornecem colchão, lugar para dormir e algumas regalias, porém, o débito cresce. “Ou seja, já sai tendo que cumprir mais delitos. Sairei de cabeça erguida, sem nada pendente com a parte de trás, mas com a da frente, a família, nosso resgate pessoal e vínculo familiar. Quero sair sem medo.”
A mudança começa na cadeia, não do lado de fora.

A opinião é do homem que levou seis meses no fundo do Central para chegar até a frente. Agora, completa sete meses sem usar drogas e com nova vontade. “Acordo e agradeço por estar limpo, lúcido e em um lugar digno, em que eu possa morar. Estou há um ano neste endereço, cumprindo a pena com dignidade, aguardando a visita com dignidade, em um lugar limpo, sem opressão, sem aquele clima pesado de cadeia. A minha mãe entra, conversa com todo mundo, dá risada, então é algo diferente.”

De acordo com o detento, lá atrás a tensão é companheira presente. O caminho para chegar até o familiar, no caso do visitante, é longo e demorado. “É um vira para lá, vira para cá, é visita passando. Aqui é diferente. A mãe conversa com a Brigada Militar, chega aqui, me conta história. A gente fica mais tranquilo porque não vem com aquela carga pesada. Ela vem tranquila porque vai me ver bem, não estarei sujo, fedendo, sem a roupa que me deu. Mesmo preso, tenho minha dignidade de volta.”

RICARDO GIUSTI - O representante da galeria dos homossexuais conta que o grupo tem suas próprias regras de convivência, além das estabelecidas pelo sistema prisional



Vários presídios em um só



Além de toda a trajetória, carregada de rebeliões, fugas e mortes. Os corredores do antigo Presídio Central têm diversas histórias. Há o lado mais falado e temido, o das facções criminosas, mas também existem grupos sem faccionamento, que estudam, trabalham, aprendem, participam de projetos e tentam tirar algo de positivo de um angustiante período sem andar por ruas, frequentar bares ou supermercados. No interior das galerias, há os próprios comércios, além de um centro comum de compras, localizado no centro da cadeia, em um espaço terceirizado.

Com o aumento do número de presos, o Rio Grande do Sul foi o segundo Estado a ter ala destinada a travestis e homossexuais, inaugurada em 2012, com pompa e glamour. No novo local, cor, organização, biblioteca e parcerias. Os colegas de cárcere, hoje, vivem com segurança. Convivem nos corredores, tomam chimarrão, projetam o futuro e recebem visitas. Hoje, são 17 pessoas no local. O número é variável. Atualmente, são priorizados aqueles que são declarados homossexuais. Isso porque já houve mais abertura, mas os presos contam que não deu certo, já que muitos não conseguiram aceitar a diversidade.

Conforme o plantão da galeria, um homem de 32 anos, o Espaço Homossexual foi uma conquista. Enquanto se desculpava pela bagunça da casa, já que era dia de “geral” (como chamam a revista das quintas-feiras) e normalmente dormem até mais tarde já que passam os turnos nas celas, contava um pouco da sua história. Natural de Caxias do Sul, onde não há esse espaço no presídio, chegou no Central em 2014. “Lá eu estava dentro de um brete porque os outros presos não me aceitavam, vim de trânsito e conheci aqui, então pedi transferência e consegui.” Há um ano como representante do grupo, afirma que o local possui regras, além das impostas pelo sistema prisional. “Elas devem ser seguidas por todos. Quando acontece alguma coisa, conversamos internamente. Se percebemos que a situação segue, levamos para supervisão.”

Condenado há 12 anos por tentativa de homicídio, cumpre o final da pena. Deve sair em abril de 2019. Ao contar sua história, reafirma que o que o levou à cadeia foi uma exceção. “Eu não era uma pessoa do crime. Foi o único. Tenho formação superior, em administração de empresas e pedagogia, acabei me envolvendo em uma situação que me fez destruir minha vida. Luto muito para sair daqui e conseguir, não digo reconstruir, porque tenho ciência de que tudo o que tinha, eu perdi. Vou ter que construir coisas novas. É tudo novo.” Com a família ao lado, ele tem certeza que não errará novamente.

Enquanto relembra sua caminhada, diz que somente quando um indivíduo entra no sistema prisional é que percebe a importância do pai e da mãe. “Amigos e pessoas próximas, todos desaparecem. Não existe mais ninguém. Nessa hora de dificuldade, tu só pode contar com aquelas pessoas que tu menos ouve quando está bem. Tu acha que eles são de outra época e não têm nada para ensinar.” De acordo com ele, os pais o alertaram das situações de risco em que se envolvia, porém não foram levados a sério. “Saio mais maduro e seguro daqui. Aprendi a ouvir mais.” Atualmente, a maioria dos presos da galeria tem média de 25 anos, pelo menos três têm nível superior, sendo que os crimes mais comuns são assalto e tráfico.

RICARDO GIUSTI - Em muitas galerias há uma espécie de cantina, onde os presos compram gêneros alimentares



NEEJA: da alfabetização ao nível médio



O Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos (Neeja) Desembargador Alaor Antônio Terra atende a população carcerária da Cadeia Pública de Porto Alegre. O diretor do núcleo, Lourenço Rafael Seger, diz que há capacidade para 240 presos interessados. Atualmente são 217 que regularmente frequentam as atividades da instituição. “Esse número é flutuante, semanalmente nós temos trocas, porque há saídas, liberdades, então sempre inserimos novos. São duas etapas de provas anuais. Os alunos que manifestam interesse em vir à escola, nos encaminham a solicitação, é feita a triagem, em função de galerias e vagas em disponibilidade, e os matriculamos”, detalha.

Limpo, aconchegante, com professores usando jaleco, o Neeja é acolhedor e diferente da maioria das galerias da unidade. É a perspectiva de mudança pela educação. “Temos um bom grupo, apenas em dias que há revista temos variação, pela restrição de circulação”, diz. Além da sala dos 17 educadores e da direção, o espaço tem uma biblioteca com sete mil volumes, oito salas de aula, laboratório de informática (sem acesso à Internet) e uma sala de áudio e vídeo.



Reincidência




Os dados obtidos pelo Sistema Cognos, em 3 de dezembro de 2017, o índice de retorno ao sistema prisional gaúcho é de 71,4% dos homens e 58,3% das mulheres. Quando o número é de ambos os sexos, a média é de 70,7%. Na CPPA, o diretor, tenente-coronel Carlos Magno da Silva Vieira, diz que os projetos realizados ajudam os presos a terem uma nova vida quando saírem da casa prisional. Há casos que dão certo. Em cinco anos, por exemplo, foram cerca de mil pessoas que conseguiram encontrar um novo caminho. “Temos o projeto de desintoxicação do E1 que já recebeu cerca de 500 pessoas. Boa parte dos presos que foram para a Penitenciária Estadual de Canoas saíram daqui com o perfil de trabalhador. Temos cerca de 800 presos trabalhando em liga laboral. Todos eles são pessoas que querem e, conforme as psicólogas e assistentes sociais, têm tendência a não retornar ao crime”, declara.Outros já têm carteira de artesão, após passarem longos períodos tendo aula e desenvolvendo habilidades.

De acordo com o subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Eduardo Biacchi Rodrigues, dentro da cadeia eles aprendem a ter regras. Tanto que o respeito é mútuo durante o relacionamento entre policiais e apenados. Tudo o que ocorre fora das cadeias, não é represado lá dentro. Eles cumprem as normas, têm horário para banho de sol, para receber visita e para tarefas que optam por desempenhar. “O principal desafio é manter a ordem e a paz, com respeito. A gente faz muita gestão.”

RICARDO GIUSTI - Na galeria E1, dependentes químicos buscam construir uma nova forma de viver, livre das drogas




Os irmãos



Ao passar pelo pavilhão I já era possível ouvir, ao fundo, o som de uma canção gospel. Não era apenas uma voz, mas várias, que, a cada passo, se aproximava. Os policiais que acompanham a visita explicam que a música vem do J, também conhecido como o pavilhão dos “Irmãos”. São duas galerias destinadas aos evangélicos e outra, a primeira, aos presos por Maria da Penha e crimes de trânsito.

Enquanto as portas de ferro são abertas pelos policiais militares, as vozes vão ficando mais nítidas. Um preso, que se apresenta como o responsável pela galeria, conta um pouco sobre os 82 apenados que dividem o espaço. “A convivência é tranquila, a maioria é primário e não tem envolvimento com nenhum tipo de facção. Durante o dia, passamos cantando louvores, jogando alguma coisa para se entreter”, detalha o porto-alegrense, que conta já ter morado em outros lugares.
Duas galerias acima, estão os “irmãos”. Com o mesmo plantão responsável pelos dois espaços, que abrigam 50 homens, um homem de 36 anos ressalta a importância da fé. “Não usamos drogas, não fumamos, não temos nada de vício. Somos trabalhadores religiosos e levamos a palavra. Aqui somos, na maioria, ex-traficantes, que vieram para cá e conseguiram se encontrar.”

Segundo o líder, muitos eram rejeitados pelas famílias e nem visitas recebiam. Com o passar do tempo e a mudança de galeria, a situação mudou. “Eles retornaram com as visitas, a partir de então começa a nova vida.” Há oito anos no Central, enquanto cumpre pena por tráfico de drogas e homicídios, espera ano que vem estar na rua. “O que eu fazia antes lá fora, não faço mais. É uma mudança de vida. Toda ela é diferente, vou criar meus filhos de outra maneira. O que eu dava de tristeza, hoje vou dar alegria.”

No último pavimento, o auxiliar de galeria, 38 anos, enumera os resultados obtidos através da religião e de pessoas que saíram da vida do crime e tomaram um novo rumo. “Essa é a última galeria e conseguimos recuperar muitas pessoas aqui dentro. Muitos acham que não têm recuperação, mas há”, garante ele, que está há quatro anos na cadeia, sendo três e meio na galeria. Ele cumpre pena por tráfico e roubo. São 12 anos de reclusão. O auxiliar recebeu elogios pelo trabalho que desenvolve na casa. “Em julho do ano passado, ele casou aqui dentro. Ele ajuda os idosos, doentes e cadeirantes”, fala um policial. O apenado confirma. “A gente cuida sim, tem muitas pessoas que precisam de ajuda. Então um lava a roupa, dá banho, tratamos de quem tem distúrbio mental. Trazemos aqui, porque não têm como ficarem em outras galerias. Na medida que dá, pela idade, vamos até a enfermaria, eles nos socorrem. Na medida que dá, nós somos assistidos.”

RICARDO GIUSTI - Para atuar dentro dos muros do Central, e conseguir manter a disciplina e a ordem, é preciso estar em boas condições físicas e psicológicas




A tensão atrás das grades



Por mais que existam situações tranquilas dentro de um presídio, essa não é a rotina. Atuar junto com quase 5 mil presos não é uma tarefa fácil. Exige saber lidar com a tensão e coerência na hora de tomar qualquer atitude. Sempre que alguém não está bem, é orientado a descansar antes de retomar as atividades profissionais. Isso é extremamente necessário, na visão da direção da casa, já que para atuar dentro dos muros do Central é preciso estar em boas condições físicas e também psicológicas.

Nem sempre é fácil enfrentar a tensão sentida no interior do maior presídio gaúcho. Os policiais militares trabalham diariamente para manter a disciplina e a ordem. De Tramandaí, no Litoral Norte, para Porto Alegre, Robson Brás Cezimbra atua pela segunda vez na força-tarefa. Integrante do GAM, fala que é diferente estar no policiamento ostensivo, na rua. No sistema penitenciário é preciso “se adequar à rotina”. “Não é difícil, mas é preciso se moldar às normas internas, de toda parte da disciplina e movimentação do preso.”

Conhecer a mente do outro é o maior desafio, afinal, de uma hora para a outra, o distúrbio pode interromper a tranquilidade aparente. “A tensão está sempre presente, mas a gente tem que tentar entrar com o pensamento positivo, porque cada dia é diferente. Movimentamos cerca de 800 presos por dia, o fluxo é imenso”, declara. Cezimbra frisa a relação de respeito e obediência ao regramento. “Nós não temos nada a ver com o crime ou sentença do indivíduo. Trabalhamos na movimentação e também fazemos com que eles cumpram as regras.”

Ao longo dos anos, com as trocas de direção da unidade, houve mudanças, porém, o aperfeiçoamento é constante. Para lidar com uma cidade entre grades, o psicológico não pode falhar. “É preciso filtrar. Viver aqui enquanto se está aqui, quando se está com a família, viver com eles.” Quando questionado sobre a maneira que consegue “esquecer”, a resposta parece não vir: “Você está sempre ligado quando o grupo ou a chefia te acionam. Minha esposa se preocupa, não gosta muito e não gostaria que eu estivesse aqui, mas a gente tem um propósito maior, com conversa e diálogo a gente vai levando em frente os objetivos.”

Quem pegou os pais e familiares de surpresa com a decisão de atuar em Porto Alegre foi o soldado Ramiro Peixoto Ferreira, natural de Rosário do Sul, na Fronteira-Oeste. Há um mês ele chegou para trabalhar na Operação Canarinho, justamente na maior cadeia do Estado. Sem conhecer o sistema penitenciário do Central, diz que a realidade no interior das grades é impactante. “A gente não trabalha dentro da cadeia na minha cidade, fazemos a guarda externa, aqui é direto com presos. Estava acostumado a prender eles na rua, aqui tem que lidar com eles diretamente, é diferente.”

Ele confessa que, quando chegou e viu a realidade, no primeiro dia, pensou em voltar. “Me perguntei o que estava fazendo, mas com o tempo a gente vai se acostumando, se adaptando, a gente sabe o que tem que ser feito. O mais difícil é lidar com eles, aguentar algumas hostilidades, isso é complicado. Na maioria das vezes eles respeitam, mas tem que saber lidar, ter calma e paciência.”
O mais difícil do trabalho, além do ambiente, é lidar com a distância. São seis horas de ônibus para ir a Rosário e outras seis para retornar. Sempre que possível, Ferreira encara a estrada, porém, quando o cansaço é maior, procura sair do alojamento e visitar os familiares que moram na Capital. Sem saber quanto tempo vai ficar, ele afirma que quer aproveitar a experiência, diferente de tudo o que já viveu. “A movimentação é calma aqui dentro. O complicado é o risco oferecido pelo preso, não sabemos o que se passa na cabeça dele. Uns são tranquilos, mas outros não.”




AUTORIDADES AVALIAM O SISTEMA



Sidnei Brzuska, juíz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre



Afirma que uma parcela significativa da sociedade tem o pensamento de que bandido bom é bandido morto e que, dentro dos presídios, quanto pior, melhor. Porém, segundo o magistrado, o que aconteceu foi que, com isso, as organizações criminosas transformaram as penitenciárias no quanto pior, melhor para o crime. “As facções não reclamam de condições estruturais, do local, da comida ou colchão. Os presídios se tornaram postos seguros para essas pessoas que comandam o crime dali”, frisa ele, que ressalta que o Presídio Central é o berço de tudo.

De acordo com Brzuska, tudo é controlado de dentro do presídio. “O Estado se encolheu neste ‘quanto pior, melhor’ por muitos anos”, aponta o magistrado. Para ele, aos poucos a administração dessas penitenciárias foi repassada para os detentos. Para retomar o controle, que é o que o governo busca hoje, não é algo fácil.



Sonáli da Cruz Zluhan, juíza da 1ª Vara de Execuções Criminais:



Não acredita em ressocialização com o sistema como é hoje. Em um evento sobre o tema no último mês em Porto Alegre, ela afirmou que o sistema carcerário está totalmente falido e não há como falar em recuperação. “Prender como se prende hoje em dia não leva a nada, a gente só alimenta a facção, que toma conta das penitenciárias.”

Sonáli, que é responsável pela inspeção nos presídios, conta que a CPPA só funciona hoje em dia porque há um pacto com os plantões de galeria e com as facções. “Se eles quisessem, eles viravam o Central. São quase 5 mil pessoas. É uma cidade lá dentro, 400 pessoas dentro de cada galeria. Quem manda na galeria tem geladeira, cela mais conservada, com pouco mais de individualidade.” Ela garante que para entender o que acontece lá, só convivendo. “Não é questão de gostar, ter raiva ou não de preso, faz parte da sociedade. Nunca se prendeu tanto e nunca a violência cresceu tanto. As pessoas estão cada vez mais apavoradas.”



Alexandre Brandão, dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal da Defensoria Pública do RS:




Para ele, o sistema prisional brasileiro, como o gaúcho, é caótico. “Infelizmente é uma das vergonhas nacionais.” De acordo com ele, hoje existe um punitivismo muito grande, uma ideia de que a solução é prender. “Não se pergunta o que está gerando a criminalidade, o que se pode fazer para resolver esse problema. Simplesmente se quer prender e, atualmente, nós temos uma das maiores populações carcerárias do mundo”, destaca. Conforme os dados do Departamento de Segurança e Execução Penal, na tarde do dia 20 de agosto, 39.809 pessoas estavam atrás das grades no Estado.

“Hoje todo o nosso sistema prisional está superlotado”, frisa. Brandão diz que o Estado prende, mas quem administra as galerias são os presos. “Eles que se coordenam, estabelecem as normas. A pessoa que é presa fica à mercê da facção da galeria da qual está recolhido. Muitos conseguem sair e participar de projetos, mas nem todos que gostariam.”

Periodicamente, a Defensoria Pública fiscaliza as penitenciárias do Rio Grande do Sul. Brandão lembra que o sistema, no todo, é melhor que o de muitos Estados, mas ainda falta muito para dizer que é bom. “A pessoa que vai para o presídio, primeiro, ela não tem garantia da sua integralidade física. Existe uma alta propagação de doenças no sistema prisional, são presídios úmidos, superlotados, a maioria dorme no chão e com colchão de espuma direto no concreto. Falta de condições mínimas para quem está recolhido”, detalha.

Para o defensor, a sociedade não quer investir nessa área porque ninguém se importa com quem está atrás das grades. “O grande trabalho nosso é garantir o direito daqueles que estão presos. Eles precisam ser punidos pelo crime, se foi julgado nesse sentido, só que eles têm direitos ainda. A dignidade, a saúde e a sair de lá, pelo menos, como entrou, mas não sai.”

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